quinta-feira, 22 de abril de 2010

Recital de um deprimido

Relato inspirado na narrativa de Daniel Bertini Andriani (Sete Noites)


Final

Não sinto que minhas atitudes eram anormais, pois elas saiam livremente dos meus pensamentos e se dirigiam também livremente pelas calçadas, meios-fios e até por corredores mais ou menos claros deste planeta, onde me ocupava temporariamente com as obras do acaso. E embora todos me observassem de uma maneira esquisita, um tanto quanto desdenhosa, confesso que não lhes dava a mínima atenção em relação a estes olhares. Desprezava-os.
Buscava a razão da existência, pois sabia que ela existia e estava ali, talvez para não ser descoberta, mas estava ali, então a procurava por toda parte e em todas as circunstâncias possíveis e impossíveis. E, a cada nova descoberta, um novo mistério, uma nova sensação de derrota. Mais e mais e mais novas descobertas velhas. Mais e mais e mais derrotas. Não sinto que minhas descobertas eram descobertas novas, e é por isso mesmo que as classifico todas como velhas. Acredito que muitos outros avançaram muito mais que estes simples passos rumo ao desconhecido. Desconhecido!?
Uma imensa cratera se colocava em minha frente, me tirando qualquer possibilidade de chegar ao destino certo, ou errado. Procurava margeá-la, tentando me desviar deste terrível obstáculo, mas o que encontrava eram novas crateras e novas crateras. Havia um universo repleto de crateras no meio do meu caminho. Havia infinitas crateras finitas em meio a alguns jardins não tão floridos.
O sofrimento solitário, este fantasma que é companheiro dos solitários, me acompanhava sem que ninguém se apercebesse, pois não lhes dava esta chance, sobretudo, sabedor que era que jamais me compreenderiam. Satisfazia aos prazeres dos humanos que me acompanhavam, limitando-me a segui-los nas suas investidas terrenas. Imaginavam, pois, que eu estava focado nas suas atitudes. Não, não me importava com qualquer ato mundano e, apenas participava por participar, sufocava-me por sufocar. O sofrimento solitário, este sim é o companheiro de todas as horas, que conhecia toda a minha verdade, mas também respeitava a minha condição de humano e me deixava um tempo livre para participar das esquisitices da vida aqui embaixo (?).
Onde estaria o final ou mesmo o início de toda essa busca? Existe ou não existe o que buscar?
Sentia as células do corpo morrerem a cada segundo, sem que eu conseguisse reverter este processo fúnebre e aparentemente unilateral (despótico).
Sei que a morte é o único estágio conhecido, sem que saibamos na realidade qualquer fundamento a seu respeito. A morte, Deus, a evolução...
Onde estaria o final ou mesmo o início de toda essa busca? Existe ou não existe o que buscar?
Reino do animal racional; reino do animal irracional; reino vegetal e reino mineral. Planetas, satélites, estrelas, sistemas solares, galáxias, buracos negros, supernova, anãs, enfim, todo um universo descoberto e não conhecido. É um absurdo descobrirmos tantos detalhes a respeito deste universo infinito e não sabermos absolutamente nada a respeito de nós mesmos. A morte, Deus, a evolução...
Meu cérebro vasculhava terrenos movediços, que nos tratavam como se fossemos perfeitos imbecis, mergulhados e atolados neste jogo e, não nos davam a mínima chance de vencermos, nem tampouco de vivermos.
“Somos levados a crer” que não há jogo, apenas etapas de evolução. A morte, Deus, a evolução...
Onde estaria o final ou mesmo o início de toda essa busca? Existe ou não existe o que buscar?
Para cada pergunta há uma resposta. A seguir, outra pergunta e mais uma resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta e outra pergunta e outra resposta... Até quando?
A paralisação de todo o meu sistema fisiológico era acompanhada de uma paralisação racional e também intuitiva. O processo era extremamente acelerado e ao mesmo tempo transcorria numa lentidão sem limite. O foco ocular não extraía absolutamente nada do que via. A sensibilidade auditiva escutava apenas o silêncio do nada. A resposta sem pergunta e sem resposta e sem pergunta e sem resposta e sem pergunta e sem resposta... Até quando?
Atingi o mais profundo de todos os poços que imaginaria atingir. Nem mais me sentia no direito de viver, pois não existia para viver e isso me dava o direito de não mais querer viver, pois não tinha o direito de viver e não me via com outra opção. Enfim, não havia mais motivos nem substâncias para manter este meu corpo vivo. Porém, não tinha a mínima vontade de morrer, então, continuava vivo, todavia, morto aos conceitos humanos tradicionais.
Bastaria, então, de pensamentos tidos como anormais. Bastaria, então, de viagens tidas como delirantes. Bastaria, então, do uso de elementos químicos indutores de outras viagens um tanto quanto paradisíacas. Basta!
Coordenei, organizei e me certifiquei de colocar todos os meus pensamentos num traçado onde as minhas condutas terrenas se fizessem terrenas. Evidente e exclusivamente terrenas.
A princípio me senti como um viciado em drogas sem droga. Um peixe fora d’água. Gastei meu tempo comendo todo alimento desnutritivo que aparecesse em minha frente. Mastiguei o pão que o diabo amassou. Amassei o diabo que o pão mastigou. Sei lá.
Ontem, apenas estava vivo...


1ª noite

Meu quarto não é diferente de outros quartos. Entra-se pela porta e, pela janela o sol não penetra, pois o projeto arquitetônico não se preocupou com a luminosidade solar. As paredes são paredes e o teto é o teto.
A cama é tão igual a outras camas e estava tão igual a outras noites, que não me preocupei em arrumá-la. A lâmpada se apagou sem que ninguém tivesse acionado o interruptor, e pior, ela não estava queimada. Era algum defeito elétrico ou coisa parecida. Não me atrevi a chamar um eletricista naquela hora da madrugada – incômodo e impacto financeiro.
Meus olhos estavam se fechando e toda a areia de Trancoso resolveu se transferir para estes meus captadores do nada; a boca bocejava sem parar e também não tinha comando algum sobre este fenômeno: sei, era sono.
Não sabia ao certo se ainda estava acordado, creio que não, pois não me lembro de não ter dormido. A sensação se passava como num sonho. Só podia ser sonho. Estava num sonho. Quê sonho!
Aquele ser nebuloso nos seus aspectos iniciais, que inspira a tantos poetas a margear o inexplicável, mudava de cena, a cada cena, e mais ainda, não saía do meu quarto. Era irredutível e fazia parte de algum roteiro. Roteiro?
A imagem não estava muito nítida e o espectro se dirigiu até a minha cama, pronunciou algumas palavras ininteligíveis e sentou-se. Não reconheci a sua face, mesmo por que tenho que confessar, talvez até sinta um certo medo quando me deparo com tal situação. Era esse espectro tão irreconhecível assim?
Não sabia o por que estava com aquele medo inicial. Talvez por que não estivesse tão preparado como sempre imaginei estar.
Os gestos do espectro eram característicos de quem explicaria algo a alguém. Não via a sua face, pois se sentou de costas pra mim. É certo que uma paz presente se fez presente, e, sei que estava junto de alguém muito especial no reino universal. Esforçava-me para entendê-lo e suas palavras continuaram ininteligíveis. Esforçava-me também para compreender as minhas próprias perguntas. Não que eu não as compreendia, entretanto, também estava ininteligível e não distinguia uma só palavra que pronunciava. E não me refiro a outro idioma. Suponho ter participado de órbitas paralelas.
Logo após, mais que nos primeiros momentos e movimentos, senti que o diálogo era alguma resposta para tantas perguntas que ficaram vazias num passado não tão remoto. Queria compreender as palavras e os gestos daquele esforçado e magnífico ser, mas não conseguia, pois estava completamente entorpecido e não conseguia captar mensagem alguma.
É estranho saber que escrevia isso que se passou naquele exato momento, e, é surpreendente que não conseguia me libertar daquele estado hipnótico de não entendimento.
Os gestos e as palavras do espectro não eram mais tão veementes, embora continuasse calmo e pausado. Ainda assim continuava a não compreendê-lo.
Meus olhos se fecharam e sinto que toda aquela areia de Trancoso resolveu se transferir para outros captadores do nada.
Sei, foi sono. Sonho?




2ª noite

Percebo que meu quarto é diferente de outros quartos. Entra-se pela porta, mas também percebo que existem outras portas, não as de madeira, nem as de alumínio ou ferro, mas portas invisíveis, e nem mesmo eu consigo vê-las. Percebo também que pela janela o sol não penetra, pois o projeto arquitetônico não se preocupou com a luminosidade solar, mas também se esqueceram de avisar aos arquitetos que outra luz mais radiante e com características invasoras se instalou por aqui. As paredes são paredes, embora exista também um portal invisível. E o teto ainda é o teto.
A cama não é mais tão igual a outras camas e estava tão igual a outras noites, embora diferente, que não me preocupei em arrumá-la. A lâmpada não se apagou, pois não estava queimada e ninguém acionou o interruptor.
Meus olhos estavam se fechando e não mais sentia aquela areia de Trancoso se transferir para estes captadores do nada.
Sei, era sono.
Sabia ao certo que não estava acordado, aliás, creio que não estava, pois me lembro de ter dormido. A sensação se passava como na realidade. Só podia ser realidade. Estava num sonho real – Daniel no país das maravilhas.
A densidade do espectro aumentou e suas características físicas se assemelhavam às nossas. O contorno de seu corpo era mais preciso e podia apreciá-lo com mais realidade, aliás, ele é real, num sonho real.
Embora certo que o idioma utilizado por ele fosse o português, ainda assim não conseguia compreendê-lo. As palavras soavam magia, levavam-me a um estado de entorpecimento. Eram sílabas pronunciadas com precisão e controle. O ritmo ainda era o mesmo da primeira noite e o assunto também era o mesmo, e ainda assim, eu continuava na mesma, ou seja, nada compreendia, apenas assistia e me entusiasmava com tudo aquilo. Nem era mais aquele medo inicial. Não havia medo.
Sou… e estava naquele sonho...





3ª noite

Meu quarto é diferente de outros quartos. Também se entra pela porta, mas existem outras portas, não as de madeira, nem as de alumínio ou ferro, mas portas invisíveis, e agora eu as vejo, pois estão em todo o quarto. O sol penetra pela janela, e embora saiba que são duas horas da madrugada, lá está o espectro, novamente, soberano, mago e influente de solares. Os arquitetos terrenos não compreenderam mesmo esta edificação, pois outra luz mais radiante e com características invasoras se instalou por aqui. As paredes são paredes transparentes. E o teto ainda é o teto, embora agora aberto para o universo.
A cama é outra cama e estava tão igual a outras noites, embora diferente, que novamente não me preocupei em arrumá-la, e confesso, estava pronta para receber até o corpo perfumado e meigo de uma princesa de um país de outras maravilhas. A lâmpada se apagou e acendeu novamente. Não estava queimada. Alguém acionou o interruptor?
Meus olhos se fecharam antes mesmo de estarem abertos. Não havia mais areia de Trancoso ou de qualquer outra praia. Sei, estava sonho.
O espectro parou em frente a mim. Seu corpo era magnífico e embora sua face estivesse coberta por aquela nebulosidade, sentia a sua beleza universal transpassar pelo meu corpo. A energia era tão forte que não me atrevia a suspeitar de absolutamente nada acerca de sua procedência.
O idioma utilizado por ele era o português e ainda assim não conseguia compreendê-lo. Era sobre a vida. Eu sei que ele falava sobre a vida. A resposta estava nos seus lábios que não escondiam nem simulavam qualquer tentativa de enganação. A minha ignorância, ingenuidade, irresponsabilidade, imaturidade jogavam contra mim. Sou um ouvinte que ouve, entende, assimila, mas não sou capaz de memorizar nada.
Sou. E estava naquele sonho...






4ª noite

Todas as portas e janelas estão fechadas: nem brilho, nem luz, apenas uma música que fala da morte. Morte que não quer morrer. Vida que não quer mais viver e chora por continuar vivo e nunca mais poder morrer. É lindíssima, e, Freddy Mercury a interpreta magnífica e majestosamente. Recuso ouvi-la apenas uma vez. Aciono o botão que repete a música selecionada ininterruptamente. É tão simples não morrer...
Meus olhos fechados, e, abertos para viagens dentro do meu próprio corpo, anunciavam a chegada daquele que tanto esperei durante todo o dia. Nesta quarta noite, o seu formato misturava a realidade dos sonhos com espectros de outras dimensões.
A densidade de seu magnífico espectro era maior e sugeri a meus pensamentos tocá-lo, mesmo que para isso necessitasse desrespeitar qualquer regra universal. Meus pensamentos eram mais racionais que meus pensamentos anteriores, e não o toquei, apenas o ouvi.
Procurava não me distrair com futilidade alguma e me concentrava nas suas palavras, que se incorporavam toda ao brilho do quarto.
Eu sei que ele falava sobre a vida, esta ou aquela vida, mas falava sobre vida. A pergunta estava no meu semblante interrogativo, que não escondia nem simulava qualquer tentativa de enganação. A sua paciência, calma, sensatez, maturidade jogavam a seu favor.
Sou um ouvinte que pensa que ouve; pensa que não entende; pensa que não assimila, entretanto, não sou capaz de memorizar absolutamente nada.
Sou… e estava naquele sonho...




5ª noite

As portas e janelas se abriram. Brilho, luz e uma vida que fala da vida e da morte. Morte que é a vida. Vida que é a morte. É tão simples viver. É tão simples morrer...
Meus olhos abertos para visualizar o corpo que falava da vida e falava da morte. Nesta noite, o espectro estava tão brilhante que me ofuscava a visão e não sabia se o via, realmente, ou se o brilho era todo o ambiente.
Procurava as suas palavras, pois eram os únicos motivos daquele sonho. Ele falava sobre esta ou aquela vida, mas falava sobre vida, e também falava sobre esta ou aquela morte, mas falava sobre morte. As minhas perguntas se respondiam nos seus esclarecimentos. A sua paciência e a minha ansiedade; a sua calma e a minha intranqüilidade; a sua sensatez e a minha imprudência; a sua maturidade e a minha infantilidade dançavam a dança das controvérsias, no entanto, plenamente aliados e parceiros de pensamentos únicos.
Sou um pensador que ouve; pensa que apenas pensa; pensa que apenas assimila, entretanto, é capaz de memorizar absolutamente nada.
Sou… e estava naquele sonho...




6ª noite

O espectro estava aqui junto a mim. Posicionava-se no mesmo lugar de sempre. É um ente querido, e, sabe disso.
Nesta noite, diferentemente de todos os outros dias, ele apenas estava presente. Nem uma palavra se incorporava à nebulosidade brilhante do quarto. Estava um silêncio sapiente e dirigido para novos conhecimentos.
Todo o aspecto ambiental não assumiu nem padrões antigos, tampouco se mostrou novo. Aliás, não existia ambiente. O espectro ocupava todo o nosso espaço e continuava em silêncio.
Sou… e estava naquele sonho...







7ª noite

Meu quarto não é diferente de outros quartos. Agora, percebo que meu quarto é diferente de outros quartos. Meu quarto é diferente de outros quartos. Não. Nunca estive nesse sonho. Sim. Já estive nesse sonho.
O cenário era o mesmo das outras noites, embora com algumas alterações. Apesar de pensar que não estava naquele sonho, era nele que me encontrava. O espectro ainda não havia aparecido e o único fantasma que ocupava o quarto era o meu. Rangia os dentes, não porque estava com pavor, mas devido à ansiedade.
A música que fala de nunca morrer se esqueceu desse momento e provavelmente vive em outros ouvidos mais preocupados que os meus.
A cama estava arrumada, ou melhor, não foi desarrumada. O lençol estava tão branco que se imaginava uma nuvem, como um chumaço de algodão. Parece poético, mas não, é fato.
Estava tão ansioso que sem perceber esqueci de abrir os meus olhos, que já estavam abertos. Não havia mais perguntas, e conseqüentemente, não havia mais respostas, apenas contatos.
Senti que todo o sangue do meu corpo se transportou para o abdômen. Algo estava por acontecer nessa dimensão desse meu espaço, que sofria algumas transformações. Foram seis dias maravilhosos, onde não observei mancha em quaisquer atitudes. Minhas mãos transpiravam com o calor da minha ansiedade. Naquele exato momento, receei que não haveria espectro para esclarecer-me sobre o sentido da vida.
Um instante... hei-lo tão magnífico como noutras noites. Já não havia mais frio na barriga, e sim um imenso sorriso, que demonstrava toda a confiança que depositei nesse fantasma camarada. Sua presença fazia o tempo não existir e ao mesmo tempo fazia este mesmo tempo inexistente existir e ser real nesse sonho.
As suas palavras tomavam o lugar do ar, envolviam o ar e chegavam aos meus ouvidos abertos. Sua luz penetrava pela minha pele, me energizando com o calor das suas atitudes e de sua sabedoria.
Voar. Voar o mais alto que puder. Olhar. Olhar cada átomo que puder.
Suas mãos se ofereceram às minhas mãos e então, me convidaram para o vôo dos sonhos, sonho? Não. Apenas um vôo no sonho.
Meu corpo até então preso pela gravidade, obstáculo inicial entre o céu e a terra se tornou tão leve, suave e brilhante que não estava mais no chão. Alcei vôo juntamente com o espectro, que não mais se diferia de mim em nada, apenas na sabedoria.
Em poucos segundos, a minha visão era abrangente e maravilhosa. É diferente observar os movimentos na terra voando por si só. Não é como no vôo de pára-quedas. Mais diferente ainda é que o vôo de avião.
Via que os humanos se movimentavam lentamente. As luzes pareciam formar uma rodovia luminosa. Os telhados eram muito diferentes do que imaginava que eram. Havia uma movimentação dessincronizada e até certo ponto, rudimentar. Eram traços da humanidade cultivados durante milênios.
Estas trivialidades são comuns em quaisquer vôos. Mesmo assim observava estas trivialidades, afinal, não tinha esta oportunidade todos os dias.
“A liberdade do pensamento em relação às atitudes. A expressão sem mentiras. O extermínio da “Síndrome das Alturas”. A conquista de um espaço sem tempo. Morrer. É tão simples morrer”, pensou o espectro.
Durante a viagem, o espectro, agora tão real e idêntico a mim, não disse uma só palavra. E mais, eu não sentia que a sua sabedoria era a condutora momentânea deste vôo. Voávamos, apenas isso.
“As atitudes mentem. O pensamento é o nosso único canal com a verdade. Então, pense”, pensou novamente o espectro.
Estas foram as últimas palavras que captei desse espectro que me conduziu ao infinito.
... Meu quarto não é diferente de outros quartos...











Carpaccio

Não é comum encontrarmos seres humanos com aspectos de psicopata, no dia-a-dia. Mesmo que muitas fisionomias e muitos trejeitos despertem curiosidades acerca destes indivíduos, não podemos apenas ficar restritos a estes estereótipos.
Às vezes, fico durante horas sentado num determinado lugar, que na realidade são vários, e observo quase que atentamente o comportamento das pessoas que passam por mim. É difícil, e diria quase que impossível, acharmos um elemento que misturado a tantos seres comuns – na realidade, não entendo o por que classificamos os comuns de normais – se destaque por sua personalidade repugnante aos normais. Este ser repugnante aos normais conhece, e muito bem, os dois extremos de sua normalidade, que obviamente não é normal. Por ter contato direto com o seu “lado negro” – poderia também escrever “lado branco” – sabe exatamente a hora e o lugar para se expor.
O que normalmente os normais têm de normal, ou propriamente dito comum, é o fato de não conviver conscientemente com estes extremos das suas normalidades “anormais”.
Se eu fosse um psicopata consciente (sic), não iria me expor ao ridículo de me expor como psicopata, e, acredito que os psicopatas – e aqui não mais coloco a palavra “consciente”, pois são psicopatas por serem conscientes – se resguardem, principalmente por serem conscientes de seus estados psíquicos e sabedores que toda a sociedade dos “normais” estão a caça destes “malucos”. São inteligentes, perspicazes, astutos e jamais proporcionariam aos interessados, ou seja, a quase toda a sociedade dos “normais”, que as suas “manias incomuns” fossem desvendadas impunemente. Antes de serem descobertos fariam muitas vítimas que inocentemente passassem pelos seus caminhos.
Nos nossos dias, é comum nas grandes metrópoles que os Institutos de Pesquisas enviem pessoas, qualificadas ou não, treinadas ou não, ao campo – não é necessariamente um campo de esportes ou de guerra, mas também pode ser –, perguntando perguntas dirigidas às pessoas, que na nomenclatura destes institutos se chamam entrevistados, e são preliminarmente classificados segundo os interesses das empresas que pagaram pela pesquisa. Geralmente, saem em grupos de pesquisadores e procuram locais com alta taxa de concentração de transeuntes, onde se facilita e muito as tais abordagens.
No Terminal Santana de ônibus, São Paulo, sempre havia muitas pesquisadoras – é incomum encontrarmos um pesquisador do sexo masculino, talvez seja mais uma destas tão difundidas técnicas de abordagem –, comumente trabalhando para escolas de idiomas ou para escolas de informática, mas curiosamente, não havia nenhuma delas naquela tarde de janeiro, onde o sol ardia na face de todos aqueles que se aventuravam em não se proteger desta magnífica estrela, e ele, tanto quanto os proprietários de veículos automotores, não se importava com os altos índices de poluição registrados no ar da grande metrópole. Algumas pequenas nuvens brancas que rumavam no sentido sul-norte, e também pareciam dispersas no céu, me despertaram a atenção e a curiosidade. O fato é que elas se deslocavam com muita rapidez – ao menos naquele momento – e aqui embaixo não havia um só resquício de vento.
Repito, naquela tarde de janeiro não havia uma pesquisadora sequer no terminal de ônibus, o que também me chamou a atenção, porém, não me despertou curiosidade alguma. Pessoalmente, e digo pessoalmente por se tratar de uma questão pessoal, gosto de ser abordado por estas moças para responder a estas pesquisas. Infelizmente, e digo infelizmente sem saber o motivo verdadeiro desta infelicidade, as perguntas se dirigem geralmente ao público jovem, e embora eu me considere como tal, o certo é que tenho a fisionomia característica de um senhor não muito comum e de meia idade.
Encontrava-me sentado num dos bancos de concreto queimado, no Terminal Santana de ônibus, sem me preocupar se por ali passaria algum tipo de psicopata. Este terminal fica próximo a minha casa, contudo, resolvi repousar as minhas nádegas, e conseqüentemente, as minhas pernas nesta parada, pois caminhei desde o bairro do Ipiranga até este terminal. Quem conhece São Paulo sabe que estou me referindo a uma distância considerável. São aproximadamente dez quilômetros, e mais, passando por avenidas extremamente congestionadas de veículos dirigidos por cidadãos que se encontram num estado psíquico caótico. Aquele sol ao qual me referi há pouco, também me acompanhou nesta jornada. Aquelas pequenas nuvens brancas, as quais também me referi há pouco, também me acompanharam desde a Zona Sul (Ipiranga) até a Zona Norte (Santana) – estavam extremamente lentas.
O Terminal Santana recebe linhas de ônibus de praticamente toda a Zona Norte. O metrô integra-se a este terminal, mas isso não vem ao caso. A grande maioria dos ônibus desta metrópole são movidos a óleo diesel, combustível altamente poluente. Geralmente, o repouso deve ser acompanhado de uma respiração saudável, porém aquele local não era o mais indicado para tal propósito. O ar que eu respirava naquele momento de descanso, não era propriamente dito um ar puro. Sofria a influência do monóxido de carbono exalado pelos escapamentos de todos aqueles ônibus, que entravam e saíam do terminal. Mas como diz o ditado: “quem não tem cão caça com gato”.
Diferentes da minha canseira corporal estavam os meus olhos atenciosos. Aquela atenção tinha como motivo as curvas maravilhosas de uma mulher de cabelos dourados e olhos azuis, que acabara de se sentar ao meu lado, naquele banco de concreto queimado. Claro que ao lado daquele monumento vivo, meus olhos se esqueceriam da minha extenuante fadiga. Não que todas as mulheres mexam com o meu instinto animal, claro que não. Mas aquela mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas tinha mais que cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas. Tinha apoiada em seu colo uma prancheta contendo papéis, que no primeiro instante não tive a curiosidade de saber do que se tratava: era muito óbvio não ter esta curiosidade.
Todas as ruas, alamedas e avenidas são locais públicos. Também o são os terminais de ônibus e as estações de metrô. Não quero citar outros locais públicos, afinal, estava num terminal de ônibus e isso bastava.
Não é comum nas grandes metrópoles cumprimentar as pessoas que passam por nós, e nem mesmo aquelas que estão paradas ao nosso lado. Acho esta atitude uma falta total de educação e princípios, mesmo assim, não cumprimentei aquela mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas que estava ao meu lado.
Fiquei intrigado com aquela prancheta que estava apoiada nas coxas daquela mulher, pois como escrevi anteriormente, naquele dia não existia nenhuma pesquisadora no Terminal Santana. E o que seria aquela prancheta, se não um apoio para os famosos formulários de pesquisa?
A mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas parecia estar por demais apreensiva com alguma coisa. Os seus cabelos dourados, os seus olhos azuis e as suas curvas maravilhosas estavam em busca de alguns dados. Mas que dados seriam estes?
Não era o calor daquela tarde de verão, nem os gases poluentes daquele terminal infernal, que faziam escorrer pela minha face um suor frio, despropositado e inadequado. Não. O verdadeiro motivo que levava o meu corpo a ter aquele comportamento imaturo era a presença daquele monumento vivo ao meu lado. Como não tenho o hábito de usar lenços de papel, nem de tecido, ao chegar na ponta do meu queixo, os pingos de suor caíram verticalmente até o chão, e, rapidamente, formaram uma pequena poça, naquele chão sujo.
“O senhor me parece estar cansado”, disse-me a mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas e magistralmente vestida com um vestido azul-turquesa, que estava colado ao seu corpo. Para combinar usava uma sandália de plataforma da mesma cor do vestido. Ela era toda azul.

_ Como? Disse-lhe embasbacado.

“Eu disse que o senhor me parece cansado!”.

_ Desculpe-me. Eu não ouvi com perfeição o que você me dissera. Não que tenha problemas auditivos – mentira. Apenas estava distraído com imagens encantadoras, que me levaram a um mundo bem distante deste terminal. Sendo assim, não entendi o que me dissera. Realmente, eu estou cansado. Uma caminhada fora dos planos e sob um calor imprudente me deixou nesse estado – esta resposta me pareceu extremamente sem sentido, mas...

“Tenho reparado que o senhor freqüenta este local com certa assiduidade. Sou psicóloga e costumo observar as pessoas, sem que estas percebam – como se isso fosse possível, pois se tratava de uma mulher com atributos físicos perceptíveis até por um cego. Sem fazer qualquer chacota com estes nossos amigos sem visão, mas é impossível não percebê-la, mesmo se estivéssemos junto a uma multidão. Meu nome é Kátia”.

_ Realmente. Venho com certa freqüência a este local, pois o comportamento humano me fascina. Por aqui, devido à finalidade de baldear passageiros, passam milhares de pessoas todos os dias. Sendo assim, trata-se sem dúvida de um local perfeito para observações comportamentais.

Sendo aquela mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas, uma psicóloga, não poderia de maneira alguma lhe falar do motivo pelo qual eu visitava com freqüência aquele local.
Como me interessei profundamente nos cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas, e porque não escrever da combinação perfeita do vestuário, pensei em prolongar o assunto, mas inesperadamente não houve necessidade.

“Você me responderia algumas perguntas?”.

Somente pelo fato de trocar o senhor pelo você, me deixou mais à vontade e também mais esperançoso. A esperança é sempre um estado natural dos sonhadores.
Não houve qualquer espécie de hesitação de minha parte, pois encontrei nesta pergunta uma maneira de continuar a vê-la, sem a necessidade de transcorrer por assuntos fúteis, tais como: vai chover! Que calor horrível!

_ Claro! Como posso ajudá-la?

“O ar nesse terminal está muito poluído. E também a poluição sonora provocada pelos ônibus e pelos passos dos transeuntes é insuportável. Será que poderíamos ir a um outro lugar mais tranqüilo e com menos gases poluentes, para conversarmos com mais calma?”.

Para uma pergunta inesperada, todavia agradável, necessita-se de momentos de reflexão. Mesmo que seja para refletir sobre absolutamente nada, este pequeno intervalo de tempo é devidamente importante para refrescar os sentidos mais envolvidos com tal questionamento e imagem. Passado esse instante de descontração e torpor fui taxativo:

_ Conheço um parque que fica próximo daqui. Lá existem árvores frondosas, que nos proporcionariam sombra e ar fresco, além é claro, da paz que por ora necessitamos.

“Claro!”

Durante vinte e seis minutos e trinta e quatro segundos – não possuo relógio de pulso, nem de bolso, e, descobri o tempo que durou esta caminhada contando mentalmente os segundos – andei lado a lado com aquela musa do Olimpo, ou então seja lá qual for o monte que por ora esteja em moda. Ao passar por nós, muitas pessoas nos olhavam, e, provavelmente me invejavam – principalmente os homens – por estar lado a lado com aqueles cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas. Chegando no parque, procuramos um banco de madeira, não tão confortável, mas que pudéssemos ficar à vontade.

_ Está bom aqui?

“Maravilhoso!”

_ Ótimo!

Por um instante, e esse instante durou apenas um instante, um pensamento diabólico passou pela mente, que aos olhos daquela mulher não poderia jamais mentir, porém… E se esta musa de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas, de vestido e sandália azul-turquesa fosse uma psicopata e não simplesmente uma psicóloga?
Pelas estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), esta doença psíquica é mais comum entre os seres humanos – alguns animais irracionais também sofrem deste mal – do sexo masculino. Sou completamente leigo neste assunto – leio matérias em revistas científicas e em livros específicos –, e conheço pouquíssimos casos desta doença nos seres humanos do sexo feminino, porém, aquele ser humano de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas é um ser humano, e como tal, não estaria de maneira alguma imune a esta doença psíquica.
Seu vestido, sua sandália e inclusive os acessórios eram todos azuis-turquesa e combinavam perfeitamente com os seus olhos azuis. Os seus cabelos dourados combinavam perfeitamente com o seu corpo bronzeado pelo sol. Era uma mulher fascinante e estonteante, mas, e se fosse uma mulher fascinante, estonteante e psicopata?

“Podemos começar?”

_ Responderei aquilo que estiver ao meu alcance (mentira!).

Esta resposta é muito óbvia. Pensei, instantaneamente, em várias alternativas, porém, estava tão ansioso que resolvi falar a primeira resposta que viesse em minha cabeça e por acaso foi esta que me surgiu.

“Você tem algum trauma de infância?”

Esta pergunta é clássica dos psicólogos, independentemente do mestre que seguem. A infância é tão importante psicologicamente para a vida de um indivíduo quanto os primeiros meses de aula são para os alunos. Com certeza, a mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas, e agora se postando como psicóloga tinha todos os motivos para fazer esta pergunta clássica. Por um instante, pensei até em não responder, porém, o que pensaria a psicóloga desta minha atitude. Os neurônios “entraram em parafuso” querendo descobrir algo. Qual seria o motivo para tal pergunta?

_ Creio que todos nós tivemos algum tipo de trauma na infância. Nela não há uma relação racional com o tempo. Os ponteiros de segundos dos relógios caminham exatamente como caminham nos dias de adulto, todavia, a vida não parece que caminha como caminha quando somos adultos. Durante a infância, o tempo caminha lentamente e os fatos não resolvidos ficam na memória. O despertar destes problemas chega quando atingimos a idade adulta. Você não acha?

A mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas, e agora agindo como psicóloga não respondeu absolutamente nada. As minhas considerações eram anotadas num bloco timbrado com as iniciais K.S.D. Ela conseguia escrever e ao mesmo tempo me olhar. É claro, eu preferia aquele olhar azul que aqueles rabiscos psicológicos. Aliás, não sei o que ela anotava, pois não tive a mínima curiosidade em sabê-lo (mais uma mentira). Meu ser se dividia em duas metades: primeiro, aquele que idolatrava aquela musa fascinante. Segundo, aquele que tinha dúvida quanto ao estado psíquico da entrevistadora.

“Você poderia me contar sobre algum dos seus traumas?”

Além daquele cabelo dourado, daqueles olhos azuis, daquelas curvas maravilhosas, aquela psicóloga tinha uma voz tão marcante e sensual, que eu inventaria quinhentos traumas apenas para estar ao seu lado.
Quando vivo, meu falecido tio Joaquim, irmão de minha falecida mãe, sempre fora um homem muito brincalhão. Não gostava de ouvir, nem de contar piadas, porém, fazia da vida uma verdadeira piada. Gostava da solidão, embora fosse casado e tivesse uma filha maravilhosa. Seu passatempo favorito era sentar-se numa destas cadeiras de balanço – provavelmente estava defeituosa, pois nunca percebi o seu balanço – na varanda de sua casa e por horas apreciava os colibris beberem um preparado de água com açúcar, que ele cuidadosamente despejava num frasco de plástico. O bebedouro parecia eficiente, pois os colibris não tinham nenhuma dificuldade em utilizá-lo. Os enormes olhos azuis do meu tio Joaquim brilhavam com a dança dos colibris.
Era um homem forte e ligado no mundo misterioso e deslumbrante dos pensamentos. Pensar levava aquele homem a ser um ser solitário, embora sempre tivesse a companhia de sua esposa. Porém, a sua companheira mais fiel era uma garrafa de aguardente, que se esvaziava quando a noite chegava. Era um fumante inveterado e consumia quatro maços de cigarro por dia. Os preferidos eram aqueles com alta taxa de nicotina e alcatrão.
Era meu padrinho de batismo cristão, e, antigamente este título facultava ao seu titular certas responsabilidades: o direito de ser o segundo pai era a principal delas. Lembro-me perfeitamente de sua felicidade e honra ao ser chamado por mim de padrinho. Nos dias de festa – principalmente o meu aniversário, natal e dia das crianças – ele me presenteava com brinquedos maravilhosos – carrinho de pedalo, carro do Corpo de Bombeiros, arco e flecha e outros, muitos outros – comprados a preço de custo, pois ele trabalhava numa indústria destes brinquedos. Era um bom homem e melhor ainda como padrinho. Muitos garotos que moravam próximo à minha casa me invejavam, pois os seus padrinhos eram pessoas sem a mínima sensibilidade e também não assumiam a condição que o título lhes facultava, ou seja, de ser o segundo pai.
O meu falecido avô, pai da minha falecida mãe, e conseqüentemente, pai do meu falecido tio e padrinho Joaquim, faleceu quando o meu falecido tio e padrinho Joaquim tinha apenas dois anos de idade. E talvez fora este motivo que levou meu tio e padrinho Joaquim a gostar demais de crianças. Meus filhos adoravam o tio Joaquim.
Certa vez, e naquela época eu tinha aproximadamente três anos, meus falecidos pais e eu fizemos uma visita à casa do meu falecido tio Joaquim. Não íamos freqüentemente visitá-lo, pois morávamos em cidades diferentes, e na época duzentos quilômetros era uma distância considerável. Nestas oportunidades a sua felicidade era transparente, pois o meu falecido tio e padrinho Joaquim gostava e muito dos meus falecidos pais.
Lembro-me perfeitamente de um “pé de tomatinho”, que segundo a minha falecida mãe me contou, era paciente e carinhosamente cuidado pelo meu falecido tio e padrinho Joaquim, pois o plantou quando eu nasci. Nunca acreditei nesta história, pois me parecia muito verdadeira e melosa. Todavia, a minha primeira ação quando chegava à casa de meu falecido tio e padrinho Joaquim era pedir-lhe que colhesse alguns daqueles “tomatinhos” maduros para que eu pudesse degustá-los. Naquele dia, também como em todos os outros não fora diferente e pedi ao meu falecido tio e padrinho Joaquim que apanhasse sete “tomatinhos” maduros (conta de mentiroso). Prontamente, meu falecido tio e padrinho Joaquim colheu-os, e, numa atitude digna de um segundo pai, pediu-me que os lavasse antes de comê-los – é importante esclarecer que o meu falecido tio e padrinho Joaquim nunca usou agrotóxico na sua cultura, pois ele sempre fora contra a utilização destes defensivos (sic) agrícolas.
O quintal de sua casa era enorme. A gramínea plantada e plenamente desenvolvida dava um aspecto pictórico ao terreno, pois encantava os olhos observar com atenção àquela tela viva. Meu falecido tio e padrinho Joaquim plantou uma diversidade enorme de pés de frutas, tais como: goiabeira, ameixeira, jabuticabeira, várias espécies de laranja e também uma parreira de uvas niagara. Eu me esbaldava naquele paraíso frutífero, visto que, o nosso quintal era totalmente cimentado. Tinha suas vantagens, pois minha falecida mãe não teria condições físicas de limpar adequadamente um terreno similar àquele de meu falecido tio e padrinho Joaquim.
Quando meus falecidos pais visitavam meu falecido tio e padrinho Joaquim, este, consumia um número bem menor de cigarros. Meus falecidos pais não tinham qualquer restrição ou aversão ao tabaco. Provavelmente, esta atitude de meu falecido tio e padrinho Joaquim era em meu respeito, devido ao mau exemplo que fumar proporcionaria a uma criança – mais uma vez observamos o exemplo de um padrinho verdadeiramente assumido.
Meu falecido pai foi até o bar comprar um maço de cigarros para a minha falecida mãe. Minha tia, ainda viva, mostrava o seu canteiro de flores para a minha falecida mãe, que se encantava ao ver o cuidado com que a minha tia cuidava daquele pedaço do mundo, aliás, seu mundo.
Meu falecido tio e padrinho Joaquim me ajudava a lavar aqueles benquistos “tomatinhos” vermelhos e maduros.
A cozinha era pequena, porém, o espaço era devidamente adequado e bem distribuído, o que na linguagem arquitetônica se diz que é um cômodo simples e funcional. O relógio de parede – que curiosamente não ficava na parede, e sim, na porta do armário de cozinha – marcava onze horas e treze minutos em seus ponteiros. Era o momento que indicava o início dos preparativos para “fazer o almoço”. Quando os meus falecidos pais visitavam a casa do meu falecido tio e padrinho Joaquim, a incumbência de cozinhar era toda sua. A especialidade era uma macarronada ao sugo. Costumava preparar alguma carne para acrescentar proteínas ao cardápio (não creio que fosse esta a sua intenção, mas…). Retirou da geladeira uma carne muita bem fatiada e crua. Nunca eu tinha visto carne tão fina como aquela. Devido a pouca idade, não saberia distinguir uma carne vermelha de boi, de uma carne branca de frango.
Cochichou aos meus ouvidos que aquela carne era muito especial. Segundo o meu falecido tio e padrinho Joaquim, tratava-se do lombo, minuciosamente fatiado, do senhor Manoel, ex-proprietário da padaria da esquina, que havia falecido há poucos dias – morte que causou um embaraço muito grande na vizinhança, pois o falecimento não teve explicações lógicas, mesmo que a perícia tenha caracterizado a morte como “parada cardíaca”. Não sabia que os seres humanos comiam carne de seres humanos. A palavra do meu falecido tio e padrinho Joaquim significava muito para mim. Naquele momento, ele disse que aquela carne fina e vermelha era o lombo, minuciosamente fatiado do senhor Manoel, ex-proprietário da padaria da esquina. O esclarecimento do meu falecido tio e padrinho Joaquim foi o suficiente para que eu acreditasse que era verdade.
Ele acomodou toda aquela carne num recipiente contendo um molho verde. Deixou por alguns minutos aquela carne vermelha “nadar” naquele molho verde. Saboreou alguns pedaços que, segundo ele, serviriam para experimentar o gosto. Se fosse levar em conta a feição que meu falecido tio e padrinho Joaquim aparentava quando levava à boca aquela carne fina, vermelha e agora temperada com aquele molho verde, certamente acreditaria que o sabor era delicioso.
Ofereceu-me um pedaço, que prontamente recusei, pois vinha de uma educação, onde meus falecidos pais me ensinavam que jamais deveria aceitar qualquer alimento ou bebida oferecida por quem quer que fosse. Meu falecido tio e padrinho Joaquim não insistiu, pois conhecia, e bem, a educação que meus falecidos pais me deram, e, não passaria jamais por cima de suas ordens.
Sempre tive vontade de comer lombo, minuciosamente fatiado de algum português falecido, que fosse dono de alguma padaria, e, preferencialmente que ela ficasse num prédio de esquina. Todavia, com o passar dos anos compreendi que este ato trata-se de canibalismo, ato terminantemente proibido pelo nosso Código Penal, e também pela “Santa Igreja Católica e Apostólica Romana”; será que o nosso Código Penal prevê a ingestão de carne humana para fins de extrema necessidade, tais como: sobreviventes da queda de avião no meio da Floresta Amazônica; sobreviventes de naufrágio de barco, próximo a uma ilha deserta? (quanta besteira!)

A mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas, combinação perfeita do vestuário, e agora se mostrando como psicóloga, estava ali parada e quem sabe até perplexa, pensando seriamente na resposta que eu tinha pra lhe dar.
Não sabia se deveria lhe contar sobre a história do lombo, minuciosamente fatiado do senhor Manoel, todavia, ela poderia pensar em absurdos a meu respeito, e também, sobre a insanidade do meu falecido tio e padrinho Joaquim, e então, desviei o assunto.

_Não sei se posso considerar o que vou lhe contar, como um trauma infantil. Sinto asco ao ver as pessoas mergulhando o pão seco e cheio de bromato, nas xícaras com café e leite. Minha falecida avó, mãe do meu falecido pai, uma italiana morena e de personalidade muito forte, característica das mulheres calabresas, embora ela tivesse nascido em Treviso, norte da Itália, tinha como hábito molhar o pão, que era feito em casa e sem bromato, numa cumbuca de madeira, todavia, cheia de vinho tinto e seco. Esta cena matinal nunca despertou em mim qualquer espécie de nojo.
Meu falecido avô, pai do meu falecido pai, costumava mergulhar o pão seco e cheio de bromato, comprado na padaria do senhor Dânio, numa xícara de porcelana barata – dizia ele que a tal xícara fora importada da China, no que jamais acreditei. A cena ficava mais horripilante ainda, quando o meu falecido avô lambuzava naquele pão horrível uma manteiga horrível na aparência, e também extremamente gordurosa. Ele não bebia e nem mordia o pão encharcado de manteiga. Ele, literalmente, sugava goela abaixo aquela mistura nojenta.
Até hoje, guardo na memória aquelas cenas de terror, e guardo também um asco abominável em relação a este procedimento alimentar.
Talvez, e digo talvez por não ter plena certeza, eu não fui ao velório do meu falecido avô – ele morreu logo após o Brasil ter conquistado o tri-campeonato de futebol, no México –, devido às lembranças marcantes e asquerosas que guardava dele. Só de pensar que daquela boca seca e morta poderia sair pedaços de pão seco com bromato, encharcado de café e leite, e mais, com aquela manteiga gordurosa, eu me recusei a ir naquela festa. Seria horrível presenciar esta cena. Todos me criticaram (será?) e condenaram (será?) por faltar a tão nobre ocasião, porém, o que ninguém soube jamais foi o motivo que me fez tomar a decisão tão penosa aos meus sinceros sentimentos (sic).
Alguns dias depois do sepultamento do meu avô, então falecido, soube através da minha irmã, ainda viva e gozando de perfeita saúde, que durante o velório aconteceram alguns fatos que marcaram tragicamente a festa. Não quis saber de absolutamente nada sobre o ocorrido, porém, até hoje a curiosidade ainda persiste.
Será que podemos considerar este relato sobre algo que realmente aconteceu como se fosse um trauma?

A psicóloga dos cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas me olhava atentamente e seus olhos azuis me diziam que sabiam de algo muito importante, que provavelmente eu estava lhe escondendo.
Não havia mais necessidade de estarmos sob aquela árvore frondosa, protegendo-nos dos raios solares. O sol repentinamente tomou o rumo oeste e os seus raios não mais apareciam com tanta intensidade, aliás, nem mais apareciam.
A noite chegara e com ela a lua cheia, e também algumas estrelas da Via Láctea. Com tantos fenômenos naturais mostrando a todos que a vida pode apresentar momentos fascinantes e enamorados, tomei a liberdade e a coragem de lhe fazer um convite:

_Conheço um restaurante nestas redondezas que faz um carpaccio com alcaparras, fantástico! Você gostaria de me acompanhar?

A musa do Olimpo, psicóloga por profissão, de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas me olhou maliciosa e atentamente. O meu olhar foi confessor. Seria apenas para comer carpaccio?

“Vamos!”...




















Dias de Trevas

Há dias em que pertenço às trevas
Os raios do sol não brilham
Nem mesmo as corujas me suportam
Vivo, então, de comum acordo com esta escuridão.

Nem mesmo as marés
Ou mesmo um só raio de lua cheia
Interfere neste marasmo ocular
Os abismos são realmente profundos
E o que parece inatingível
Sede de pronto ao real.

Nada é tão insensível
Nada é tão obscuro
Nada é tão abominável…

Há dias em que a treva se ocupa de mim
Momentos travestidos de lucidez pagã
Vitórias e derrotas
E o que importa? Basta estar...

Se houvesse luz, bastaria acendê-la
Mas o que existe são apenas focos
E me convenço
Todavia, não me iludo…

Há trevas
Cigarro aceso
Cinzas caídas
Brasa... lúcida visão
E eu me assusto
Pois apenas absorvo o temível
Sinônimo de assustador...
Guerra fria dos magos anões
Luta num jardim de flores murchas
O frio, a neblina e o silêncio assombrado
Festa dos cabelos...

Há dias em que pertenço às trevas...





























Não sou...

Não, não sou louco
Tampouco insano, apenas sou uma luz
Que teima em não brilhar.

Faço dos meus atos o apocalipse de minha vida
E corro atrás do nada
Alcançando êxito
Pois o nada é tudo o que me resta...

Não, não sou louco
Tampouco insano, apenas transporto as trevas
Que teimam em não morrer...

Faço de meu dia-a-dia um universo sem fronteiras
Mas os limites estão em mim mesmo
Não existem barreiras
São apenas obstáculos
Que teimo em não transpor...

Não, não sou louco
Tampouco insano, apenas busco sem buscar
Faço sem fazer
E participo de um ciclo vicioso
Vícios de buscar o nada…

Não, não sou louco
Tampouco insano, pois apenas não compreendo o final… afinal...





Feridas

As feridas não cicatrizam
Apenas a dor diminui com o tempo
E o tempo traz novas feridas
Novas cicatrizes...

A vida parece um ciclo vicioso e viciado
Alegria e tristeza
Tristeza e alegria
Alegria-tristeza
E mesmo nas alegrias
Ainda as feridas, ainda as cicatrizes
Vida-morte
Ou será morte-vida?

Nada cura as cicatrizes
Nem mesmo uma nova ferida…

Quando tudo isso acabará?
Existe fim?

Vida e feridas…
Morte e cicatrizes…

Vida, onde termina este ciclo?
Terminará?








O amante das gaivotas

O amante das gaivotas retornou aos penhascos
Contempla, agora, entusiasmado, os mergulhos ineficazes
Dos descompassados pelicanos.

Era o mar que o esperava
Mesmo sabendo das nuvens intrometidas
Que teimavam em cobrir sua visão
Eram pesqueiros desgovernados na bruma…

O amante das gaivotas retornou aos penhascos
Fez nascer um novo dia, igual a tantos:
Nuvens, pesqueiros e os pelicanos...

O amante das gaivotas retornou
Sem deslizar em nuvens carregadas
Ou pesqueiro sem leme…

Ah! como é bom ver novamente tantos pelicanos...














A fumaça de cigarro

A fumaça de cigarro é como nuvem passageira
Que passa lépida
Se junta ao vento voraz
Que descortina o céu
Sem imaginar que aqui embaixo
Brincamos de figuras e desenhos.

E a fumaça de cigarro é levada pelo vento voraz
Mas nem tanto
E leva, leva, e leva pra não sei onde
Nem por que
Mas leva, leva e leva...





















Visão coberta de razão

Tua visão estava coberta de razão
Tinhas algumas letras ao teu lado
Um pouco de lucidez
E às vezes, juízo insano.

Foste tragada pelos verbos e adjetivos
Método clássico do que chamam paixão…

O frio se confundia com o calor
Permitia-se trancar as portas
E deitar sobre o leito dos prazeres…

A tua emoção se confundiu com os verbetes
Ficaste inerte diante do som das palavras
Buscavas refúgio na tua consciência
E ela dizia a ti para sair
E tu ficavas… Quando as feridas foram aparecendo
Todos os bálsamos que usavas só adiava a fatalidade.

Tiveste um segundo de bom senso
Viste a insegurança e a intranqüilidade que terias:
Os primeiros pingos d’água surgiram
Mas nem com isso sucumbiste
Pois estavas lúcida e convicta.

Fugiste no instante apropriado
Enfim, tua visão estava coberta de razão...






Danem-se!...

O que resta a mim
A não ser o fosco brilho das letras
O movimento frenético dos automóveis
Ou o ruído solene dos gaitistas?

O que resta a mim
A não ser cumprimentos e elogios
Desaforos e críticas
Ou um sonho não lembrado?

O que resta a mim
A não ser o consolo dos meus filhos
O apoio de alguns amigos
E o sorriso de todos os cachorros?

O que resta a mim
A não ser terminar o poema inacabado
O romance deixado de lado
E o conto que nunca tem fim?

O que resta a mim
A não ser olhar para olhos que não me olham
Canções que não sei dançar
E dramas da vida moderna?

Sou fraco aos meus próprios anseios
Luto com armas carregadas de balas de festim
Meus cabelos brancos mostram o tempo
Que perdi com banalidades
Futilidades desastrosas a todos
Contaminador de almas que se aproximaram…

Sou fraco e franco aos meus próprios anseios
Resta-me, então, apenas a claridade da escuridão
Vivo a minha própria metáfora
Uma vida em forma de sonho
Irreal aos limites das sentenças…

O que resta a mim:
Finalizar sinfonias fúnebres
Freqüentar velórios das minhas atitudes
Ou esperar que o pranto inunda o meu poço seco?

O que resta a mim
A não ser tragar a última molécula de nicotina
Beber a última gota do líquido da vida
Ou comer o pão amassado por mim mesmo?

Interrogações que cercam um ser independente
Livre...
O que resta a mim?

Não sou eu que me questiono
Nem estes rótulos me pertencem
Então, reste o que restar… Danem-se!...












Quarenta e oito metros

Que visão decadente
A quarenta e oito metros do chão...

São pequenas imagens distorcidas
Enormes objetos minúsculos andarilhos do corredor
Um corre-corre de formigas operárias
Pagas apenas com alimentos de papel
E são turvos os seus ingredientes…

Que visão decadente
A quarenta e oito metros do chão...

Penso em me aproximar
Voar um vôo sem asas
Fechar os olhos e me jogar na imensidão
Pois não me conforta estar aqui
Pendurado por correntes de aço que me amarram
E me prendem do lado oposto do fosso…

Que visão decadente
Que vida ausente
A quarenta e oito metros do chão...











Pano de fundo

Um pano de fundo preto emoldura a minha cega visão...

Os movimentos que cortam tal paisagem
Mostram-se ativos, elétricos e ecléticos
E sou solícito aos passageiros
Que teimam em cruzar tal encruzilhada de dissabores.

Meus gestos são transparentes
Mas não se parecem com um quadro-negro
Negro!?

A falta de apetite me faz tremer de frio a barriga
Nem mesmo assim me concentro em alimentos perecíveis
E de validade duvidosa.

Um pano de fundo preto emoldura a minha cega visão...

Repito “chavões” do romantismo clássico
Incorporo eternos sofredores
Minha mente insana
Meu corpo insano
Sociedade de uma empresa falida
Instituição desavisada.

Um pano de fundo preto emoldura a minha cega visão…

Tropeço nas minhas convicções
Desamparado e sem o cão-guia
Apenas um pano de fundo preto...




Cordas

Cordas
Onde estão as cordas
Para o enforcamento coletivo?

Etapas
Quem ficou com as etapas
Para o suicídio coletivo?

Obras
Quem obrou primeiro
No sanitário coletivo?

Vacinas
Onde estão as epidemias
Preparadas nos laboratórios?

Aulas
Para que servem as aulas
Da educação do ensino público?

Armas
Onde foram as almas
Dos cidadãos de boné e farda?

Drogas
Para que tantas drogas
Se apenas uma vicia e mata?






Nada me preocupa...

Não me preocupam as bestas do apocalipse
Bestas mais poderosas
Já se encontram por cá
E quero dizer ao mundo
Para este mundo onde vivo
Que estou morto…

Não me incomodam os abutres do reino
Abutres mais famintos
Já se espalham por cá
E quero dizer ao mundo
Para este mundo onde vivo
Que estou morto…

Não me interessam as víboras das instituições
Víboras mais traiçoeiras
Já se escondem por cá
E quero dizer ao mundo
Para este mundo onde vivo
Que estou morto…

Não me assustam os monstros da madrugada
Monstros mais vorazes
Já nos espantam por cá
E quero dizer ao mundo
Para este mundo onde vivo
Que estou morto...





A morte do poeta

Morte, morte e morte
Morte ao poeta que já morreu
E se esqueceu de avisar
Traiu a lei de gravidade
Saiu do chão e voou...

Morte, morte e morte
Morte ao poeta que já voou
E se esqueceu que morreu
Traiu a lei da gravidade
Avisou o chão e voou...





















Erva daninha

Erva daninha e danada
Não sou teu vassalo
Nem és minha serva, entretanto, somos amigos
Apenas preferimos nos distanciar para podermos refletir…

Sabes que te considero
Que teus propósitos são respeitados
E sei que me respeitas
Que meus propósitos são considerados.

Ouço-te cantar desejos
Mas é melhor assim
Afinal, esta distância é para nos afastar ainda mais
… e é melhor assim...

Erva daninha e danada
Embora amigos, necessito estar afastado
Todavia, ainda amigos...















Aos poucos

A morte invade as entranhas
… o lado oculto do lunático
E consome lentamente todas suas células
Incorporando, então, todas as sadias
Metástase
Neurônios destruídos por baratas nojentas
Alimentadas de veneno de inseto
Morte lenta, dolorosa e sofrida
Palavra sem eco
Nem mesmo tom ou som
Vaga-lume sem pisca-pisca
Energia: zero...

A morte invade as entranhas
… o lado oculto do lunático
E seu choro fica embutido
No último solo de guitarra em prantos
E se esquiva dos consoladores
Que ao menos percebem seu olhar
Mas farejam carnes e ossos putrefatos
Consumido pela sagacidade da implacável moléstia…

A melancolia invadiu completamente as entranhas
… o lado oculto deste lunático...









O gigante

Desta pedra mágica observo cada pulsar do coração deste gigante
Que onda a onda reflete a sua vida
Incansável ser das descobertas
… e controlador de todos os mistérios…

No intervalo real do seu pulsar
Ficam as reflexões próximas do infinito
… há um silêncio somente comparado à morte
Todos os pensamentos percorrem um rumo
E novamente seu pulso se faz presente.

Pulsa, naturalmente, num controle fantástico
Sabedor que é que outras ondas virão
… melodia de uma nota só
Que vez ou outra se enfurece
E arrebata quantos forem seus adversários…

Nesta pedra mágica ficarei
Quantas ondas forem necessárias
Para meditar sobre os enigmas da vida
Que num processo de reversão
Busca o início do grande ciclo…

Fantasmas heróicos e também corsários levantam-se deste sal
Conduzindo-me por caminhos claros
Socorrendo-me deste meu momento
E então, me conduzem ao marco zero da existência…

Sombras, tempestades e furacões
Maré alta, maré baixa e ressaca
Tantos foram seus ciclos
Que neste instante transcendental
Tiro do seu intervalo os meus propósitos mais verdadeiros.
Fico com o pulsar deste coração gigante que me conduz à morte
Traçando minhas pulsações e reflexões
Levando-me consigo para o eterno ciclo
E então, me deixo levar...






























Reza em mim

Reza em mim o instante da morte temporal
Silenciosa… fatigante… dolorosa, mas real
E na realidade me silencia, me deixa exausto
E corrói todas as minhas energias…

Reza em mim a morte atemporal dos eternos solitários
Que não mostram prantos
Talvez até por não tê-los
Ou por não terem esperança de tê-los…

Reza em mim...





















Único ouvinte

Sou apenas sombra no meu destino
Meus atos são marcas de desatino
… insanidade aberta de um coração aberto.

Passo meus momentos trocando idéias
Com meu ser que não se cansa de ouvir
Porém, a fadiga está em quem fala
Por ter apenas um interlocutor… sapiente, mas único.

Convivo com este limite da loucura extrema
Cada dia, uma nova parcela de novidades
Que se tornam tão inéditas
Como são inéditas as rimas poéticas atuais.

Nem mesmo sombra sei se sou no meu destino
Sofro paralisias crônicas nas minhas próprias manchas…

Sofro calado e nem mesmo me faço de ouvinte entusiasmado
Talvez cansado de ouvir os mesmos temas
E aí se apresenta a fadiga do ouvinte
Por ter apenas um orador
Sapiente, porém, insano, e mais, único...










Estrada deserta

Rodar pelas estradas, sem rumo e sem direção
Acompanhar o trajeto do sol
E mergulhar fundo na escuridão
Não fugir, apenas existir...

A solidão sempre me acompanha
Doses infinitas de amargura
Água da vida com o coração da morte
Núcleo prematuro das inspirações…

Expressar meus sentimentos
Quilômetros e quilômetros rodados
Asfalto áspero e sem sinalização
Urubus revoando o caminho trágico.

As paisagens passaram e nem me lembro
Quantos postos de abastecimento ficaram pelo caminho
E talvez eu fique por aqui
E abandone todas as malas no acostamento…

Não penso em pedir carona
Peço que não me procurem
Nem ao menos me resgatem
Quero ser devorado por corvos famintos… podridão.

Rodar pela estrada, sem rumo e sem direção
Apenas estar só... Caminhos da vida… coração da morte...





Eternamente frio

De dia frio e a noite fria
Um resto de palavras soltas
Versos e idéias mortas
As têmporas refletindo um temporal de vísceras expostas
… Festas de luzes e lantejoulas…

Solidão
Prefiro barcos no meio do oceano
Nunca ancorados
Propostas livres
Sem medo das tormentas e dos furacões…

As folhas mortas do outono morto
Primavera repleta de flores murchas
Inferno para os que chegam
Chamas ardentes para os fugitivos
Sinal das sombras e dos magos
Mágica insana dos abutres famintos
Carnavais de fantasias e alegorias.

Solidão
Prefiro vôos em naves espaciais
Sem previsões do tempo
Nem escolha de trajetos, apenas liberdade…

Folhas mortas de dia e a noite cheia de flores murchas
O outono frio, a primavera fria
Um resto de inferno, versos e idéias fugitivas
As têmporas refletindo chamas ardentes
E um temporal de sombras e de magos…

Solidão
Prefiro barcos voando no espaço sideral
Sem previsões, e nunca ancorados
Propostas e solidão...
































Meu coração

Meu coração resolveu me falar
Desabafar sobre seus amores e sofrimentos
A princípio me assustei com tantas verdades
Perdidas nos coágulos das veias
Então, entreguei-me como ouvinte fiel de tão sofrido ser.

Meu coração me falou dos amores que não tive
Dos olhares que não recebi
E das horas de sono que perdi
Com tempestades de solos que não executei…

Meu coração me confidenciou das inúmeras primaveras
Nas quais morri e ressuscitei
Para morrer sufocado novamente no verão…

Nem sei por que resolveu me contar
Porém, eu, como humilde servo, ouvi...















Zé Ninguém

Sinto-me como um Zé Ninguém
Só e sem ninguém
… nem mesmo eu…

As palavras saem sem verdades
Rumos que nem mesmo eu assumo
Sou apenas a morte que me espera
Nasci apto a não viver…

Não formalizo compromissos
Pois para as derrotas finais apenas resta o fracasso
E como ser “o garoto que ia mudar o mundo”
Afinal, não há garoto
Somente funeral permanente…

Sinto-me como um Zé Ninguém
Só e sem ninguém
… nem mesmo eu...















Vitrina apagada

Este ser que fingi fugir de todos os propósitos do amor
Que se se presume fechar num lirismo crônico
É abatido por outra espécie de melancolia
E tal fuga se faz desvendada
Na abertura de seus olhares que caminham para outros olhares
Que são teimosos em não percebê-lo…

Nisso, a saída se torna escancarada
E a figura da sensatez toma outros rumos
Mostra-se invadida e arrebatada
Por circunstâncias de desprezo e indiferença…

Claro está que continua a fingir
Porém, é sabedor dos fatos
Que o leva para abismos ainda mais profundos
Vitrina apagada, apenas isso...
















Nu para o universo

Neste quarto, dispo-me para o universo
Viajo calado e ouvinte
Sentado à cama…

Absorvo cada gota de lágrima que percorre o interior já morto
São riachos de pura melancolia
Sabor de sal…

Resta-me ouvir as vozes do universo
Que soam como trovões aos meus ouvidos
Aceleram meu processo de desintegração
Morto
Apenas águas que passam…

Neste quarto, dispo-me para o universo
E aguardo o momento
Não há necessidade de me proteger…

As lágrimas percorrem cada célula do corpo já debilitado
Retirando até a última energia vivente
E então, entrego-me, nu para o universo…











Arma de brinquedo

Tenho uma arma apontada pra mim
O cão está armado
Pronto para o disparo
E nunca imaginei que estes poucos segundos
Representassem o que representam: a eternidade.

Passam imagens que estavam dormentes
Pessoas e fatos já esquecidos
Fotografias instantâneas da vida
Luzes se confundem com trevas
Confusões com calmaria
Braços tomando o lugar de pernas…

Nuvens carregadas… Nuvens de algodão… Nuvens de gafanhotos…

Um oceano agitado
E outro manso como um lago
Maré alta e maré baixa… maré baixa e maré alta…

Soldados marchando numa parada militar
Civis aglomerados aos empurrões
Vidas que se embaraçam e se embaralham…

Um arquivo inesgotável de faces
Faces até então ocultas
Porém, conhecidas de outros carnavais…

Vejo um barco a naufragar
No outro horizonte, que se imagina perdido
Um avião a decolar
Gritos de bebês famintos
Mortes por balas perdidas
Violência e festival de hipocrisia…
A eternidade que este intervalo representa
Reflete reflexos no meu cérebro
Que acorda para a vida…

As fotografias me estimulam a não viver
As imagens e os fatos já não mais se confundem
A luz mostra o fim de um túnel
Claridade e música
Não mais com trombetas, afinal, basta destes anjos medíocres.

Tinha uma arma apontada pra mim
Joguei-a no lixo, aliás, ela era de brinquedo...























Os moralistas

Figuras patéticas esses moralistas
São regados de tal zelo e se apresentam com tal escrúpulo
Que me enojo somente em olhá-los:
Pudores para isso
Recato para aquilo
Bibelôs em cristaleiras
“Um faz de conta”, cercados por aparência e refinamento.

Expressam-se de maneira requintada
Os verbos nas suas devidas conjugações
Tapam um olho
E com o outro, infernizam o que vêm.

Chatos e escandalosos
Ritual pudico da falsidade
Santos canonizados por fora
Bestas do apocalipse por dentro.

Ora! Um brinde ácido aos moralistas…













Vírus e vícios

Meu fígado produz bílis existencial
Sentimentos extraídos dos seus lábios secos
E meus rins jorram ações fúnebres
Presos por eu estar preso aos seus olhares.

Seus dentes mastigam o alimento fétido
Que apodrece a cada suspiro
E aquele ar poluído
Expirado por tantos pulmões decadentes.

Meu cérebro se expande por razões múltiplas:
Intestinos falando em nome de corações estraçalhados
Gastrites ecoando pensamentos ácidos
Axilas exalando odores putrefatos.

Carrego comigo alguns vírus incubados
Um para cada imbecilidade humana
Alguns, até mesmo guardo secretamente para futuras atrapalhadas.

Passo por uma medicina preventiva
Banalidades adquiridas por uma cobaia voluntária
E ao menos não haverá estresse
Somente vermes já conhecidos.

Um cesto enfeitado no canto da sala
Folhas e matos esmagados num processo natural
Conhaque da melhor procedência
Bambus resgatados de matas selvagens.

Um mar agitado e fugas alucinantes
Processo evoluído de antigas confraternizações
Relações humanas contemporâneas, com primatas da selva
Conhecimento pleno dos poderes universais…
Cesto, ritual, pajé, primata, selva e poder contemporâneo…

Inspiração de morte vinda do sol e da lua
Controles absolutos do fluido sangüíneo
Marca de um ser avesso aos princípios
Órgãos inúteis para humanos inúteis…

Carrego tais vírus
E desfruto dos frutos de tal cesto
Ciente que a morte é avessa a tais princípios
E então, vírus e vícios...
























Zzzzzzzz...

De repente, e eis que mais que de repente, talvez instantaneamente
Um sono intenso me pegou de surpresa
E me fez sair um pouco dos pensamentos devassos
E então, pude desfrutar de segundos de paz…

Se repetisse o fato
Talvez já estivesse dormindo
Ou ao menos teria mais tranqüilidade
Que viver balançando
Em gangorras que me levam
A alternativas que me aparecem do nada
E me conduzem ao nada…

De repente, e eis que mais que de repente, instantaneamente
Zzzzzzzz...



















Serpente

Deparo-me com o faro da língua de uma serpente
Que na realidade não me parece venenosa
Apenas fareja uma presa inconsciente
Ou duvidosa de seu real território.

Tal serpente e tal presa
Ficam por instantes a se observarem
Uma regida pelo instinto de caçadora
Outra acuada e desprotegida.

Cada gesto, um motivo de suspense
Cada palavra, uma razão para observação
Cada gesto ou palavra
Mais e mais mistérios…

Tal serpente não é venenosa
Muda repentinamente o curso da história
De caçadora a caça
Desenrola-se toda e vai embora
Numa fuga alucinante…
E a tal presa
Continua a ser presa
Mesmo livre, amarga o dissabor do cárcere eterno…





Guerra congelada

Prefiro saber que os mísseis estão apontados
Em todas as direções
Armas espaciais e guerra nas estrelas…

Prefiro o frio na barriga da guerra fria
Que intimidava pela força e pelo medo do fim
Afinal, os botões são sempre vermelhos
E os dedos sempre cheios de anéis de rubis…

Poderosos botões
Dedos aniquiladores
Prefiro armas nucleares a soldados invisíveis…

Hoje, já não se fala mais desta guerra
Os mísseis possuem ogivas de papéis
As armas espaciais enviam dados das bolsas de valores
A Guerra nas Estrelas aumenta as cotações da Nasdaq
Os botões da vez são o “enter” e o “delete”
E os dedos são contaminados com a peste da L.E.R.
Guerra Fria dos “chips”
Fantasmas eletromagnéticos
Vampiros embutidos na memória
Placa-madrasta de intocáveis “bits”
Vírus fatal do “eu amo a terra”
Ratos, vermes e “clones”
Seres humanos em série:
Fim...

Não parirá
Uma gema de ovo galado
Que nunca parirá
Princípios claros de um ser
De quem ninguém mais precisa…
Então, o nascimento não se faz necessário
E a morte reluta em não vir
Porém virá
Silenciosa e sem alegorias
Mas virá, e será...
Uma gema de ovo galado
Que nunca parirá...
















Ronda fúnebre
A morte ronda vagarosa junto a mim
Acendo o primeiro cigarro do dia
E ele me ajuda a lembrar
Que os momentos são embaçados pela fumaça que caminha
Também vagarosa pelo ar
E junto a mim…
Às vezes a quero
Mesmo que seja por um instante, mas a quero
E sua sensualidade exposta me convida a ir ao seu encontro.
A morte ronda vagarosa junto a mim
Acendo o último cigarro do dia
E ele me ajuda a esquecer tais momentos
E a tal fumaça me abre o horizonte para o sono eterno…
Apago o cigarro
Apago a morte
E durmo...














Banco rústico

Naquele banco de cimento rústico
Abandonado no meio de um jardim trágico
Passarelas, escadas e roseiras clássicas
Destruição, vícios, escuridão e mágicas.

Naquele banco de cimento úmido
De costas para um mundo cênico
Inundei o chão seco com lágrimas
Momentos plenos de uma vida única.

Naquele banco de cimento
Abandonado no meio de um jardim
Passarelas, escadas e roseiras
Destruição, vícios e escuridão.

Naquele banco de cimento
De costas para um mundo
Inundei o chão seco
Momentos plenos de uma vida.

Rústico e trágico
Clássicas e mágicas
Úmido e cênico
Lágrimas e única…









Vazio

Uma casa vazia
Somente ouvidos nas paredes
E a minha voz triste
Rouca de tanto gritar o silêncio…

Uma alma vazia
Somente a fumaça do cigarro
Rios de lágrimas
E um escudo para o mundo…

Uma casa e uma alma vazia
Ecos de noites sombrias
Cárcere dos próprios desafios…

Uma casa vazia
E uma alma vazia…

















Razão de viver

Onde está a razão de viver:
Na própria vida que se faz catastrófica
Nas bordas do esquecimento
Ou na rampa acima daquilo que não fazemos?

Melancolia de um poço fundo
Relato de quem conhece tal melancolia
Que vive e sobrevive em poços fundos
E que cria canais de passagens para outros poços.

Onde está a razão de viver:
Na própria vida que se faz risonha
Nas bordas das imagens
Ou na rampa abaixo do que conhecemos?

Cantorias de um céu azul
Relato dos grandes trovadores
Que vivem e sobrevivem canções
E que criam canais de sustentação…

Onde está a razão de viver?












Expansão das fronteiras

Deuses terráqueos
Deuses celestes
Deuses universais…

Quanto mais o homem descobre
Mais ainda se expandem as fronteiras destes deuses...



























Elos perdidos

A ciência tenta encontrar o elo perdido
Mas não existe o elo perdido
O que existe são inventores de elos perdidos...






























Sem resposta

Nem nos pequenos
Nem nos grandes fenômenos universais
Encontraremos as respostas
Simplesmente, por não existir tais respostas...





























A guerra da natureza

O vento que agora sopra
Rajadas de incerteza e insegurança
Arranca impiedosamente as folhas das árvores
Arremessando-as ao léu.

Motins espontâneos e decisivos
Próprios das folhas selvagens
Que se revoltam contra os ventos bravios
Assumindo direções autônomas.

Um vento determinado para as devastações
E enquanto folhas selvagens se ocupam das rebeliões
Uma guerra fúnebre se dá no seio da natureza.

Inimigos da liberdade
E do outro lado
A própria liberdade selvagem…
















Qual corpo resta?

Qual corpo resta ao poeta para desabafar as suas dúvidas?

Neste corpo onde se instalou por tempo tão breve
Já não se encontra mais
Este corpo desprezou o poeta
Fez dele um amigo esquecido
Nem amigo
Nem poeta…

Qual corpo resta ao poeta para desabafar as suas dores?

Por aqui jaz o delírio
Não se ouve mais sussurros
Os vôos somente em aviões de carreira
Os sem juízo se foram
Trocaram-se os ouvidos por “headphones”
E o pássaro azul morreu...

Qual corpo resta ao poeta para viajar pelo espaço?

Morri!...












Deus morto

A morte de um deus
Deus criado pelas criaturas
Criadas supostamente por este deus
Que morreu ao primeiro fracasso…

Fracasso
Pois após o seu velório
Novos deuses virão
Novas conveniências existirão…

Se deus fosse ciente de sua morte
Cancelaria a nossa própria morte…

Onde está este deus morto?

Sonho em preto e branco...

Basta de deuses mortos
Basta de nossas próprias mortes
Sonho em preto e branco...













Inferno frio

Um inferno escuro e gelado
Silencioso
Portas emperradas e ruidosas
Caminho fechado
Altura sem escadas
… um inferno gelado e escuro…

Afinal, onde estão as chamas eternas?
Afinal, onde está o calor insuportável?

Apenas sinto o frio das suas paredes
Apenas vejo o escuro de sua morte
Vidas não amadas
E nunca amantes
… um inferno gelado e escuro…

















Mirante
Mirante:
Luzes da metrópole à distância
Nuvens carregadas
Lua minguante
Estrela Dalva
Escuridão e silêncio…

Mirante:
Eu e você
Parceiros da mesma espécie…

Você
Um mato com características alucinógenas
Eu
Um alucinógeno com características primitivas…

Eu e você
Parceiros dos mesmos prazeres
Amantes da mesma lua
Amantes da mesma Estrela Dalva…

Mirante:
Vôo infinito para o finito
Vôo sem asa delta
Apenas voar…
Você causando fogo na mata
Eu causando calafrios nos binóculos.

Mirante:
O sossego
E um corpo despedaçado nas pedras...


Ecos

Ecos de uma voz impositora
Facínora
Ecos de uma voz sem escrúpulo
Facínora
Apenas ecos…

Um sorriso de uma voz impositora
Facínora
Um sorriso de uma voz sem escrúpulo
Facínora
Apenas ecos de um sorriso…






















Sem corpo e sem alma

Alegres testemunhos de carnes humanas
Dilaceradas por metais em chamas
Explosão de raiva e de fuga
Matança dos próprios corpos nossos
Atingidos pelo “Padre Nosso”.

Onde teríamos a paz?

Mais que santos
Bem mais que páginas bíblicas
Do Novo e do Velho
Alegres testemunhos de carnes humanas
Queimadas por fagulhas de aço.

Um corpo santo pendurado no poste
Mariposas dançarinas
Ratazanas famintas
Corpo que se transformou em pão
Sangue que se transformou em vinho
Pão e sangue
Corpo e vinho…

Alegres testemunhos de carnes humanas:
Sem corpo
E sem alma...








Baratas e mais baratas

Mais e mais baratas
Baratas pelos cantos
Baratas pelo chão
Baratas voadoras, baratas inovadoras
Baratas de pernas para o ar
Baratas de esgoto
Baratas do lar
Grupos de baratas
Baratas cínicas
Baratas viciadas…

Mais e mais baratas
Venenos inofensivos para baratas
Gritos de terror e pavor
Baratas dentro dos sapatos
Baratas sem aroma
Grupos de baratas
Baratas cínicas
Baratas viciadas

Mais e mais baratas...












Nunca encontro

Onde encontro estradas
Não encontro saídas…

Onde encontro viagens
Não encontro passagens…

Onde vejo luz
Não vejo brilho…

Onde vejo trevas
Não vejo ruínas…

Tudo são estradas… nada é saída
Tudo são viagens… nada são passagens
Tudo é luz… nada é brilho
Tudo são trevas… nada são ruínas...

Onde encontro
Não encontro...














Morte à vida e vida à morte

Morte à vida
Já que a morte é a vida…

Morro a cada trago de cigarro: vida
Morro a cada gole de cachaça: vida…

Vida à morte
Já que a vida é a morte…

Vivo a cada morte que procuro: morte
Vivo a cada morte que ensaio: morte…

Morte à vida
Vida à morte
Já que tudo na vida é vida e morte
Morte e vida...

















Sombra, mancha, guerra...

Sou a sombra de mim mesmo
Uma gota que cai
E nunca voltará a cair…

Sou a mancha de mim mesmo
A promessa durante o dia
E o esquecimento durante a noite…

Sou a guerra de mim mesmo
Uma batalha que se perde
E outra que se haverá de perder…

Eu sou a sombra
Eu sou a mancha
Eu sou a guerra
Nunca para os outros
Apenas para mim mesmo…

Sou a sombra da minha noite
Sou a mancha da minha gota
Sou a guerra do meu dia
Sombra, mancha e guerra
Pra mim
Só pra mim...









Versos de inverno

Novamente meus neurônios declamam versos
Municiam meu corpo com estranhas trajetórias
Confunde o meu pé com a minha cabeça
E me anima a declarar guerra aos seres vivos.

Novamente meus neurônios declamam versos
Abutres revoam sobre um corpo insano e debilitado
Prazer de enterrar no céu, o inferno da vida
Contaminação putrefata dos meus desejos de homem.

Novamente meus neurônios declamam versos
Apagam fantasias que me levaram ao êxtase
Uma poesia viva e inacabada
Delírios de uma noite de inverno.

Novamente meus neurônios declamam versos...


















Morfeu

Morfeu se instalou no meu travesseiro
Abdicou do seu castelo nas nuvens
E ocupa, literalmente, a espuma deste companheiro.

Meu sono é carregado por indecifráveis pesadelos
Um mar de imagens grotescas e intermitentes
Realidade de um presente sem passado
Aceitação da amizade sem ser amigo
Livro aberto nas páginas iniciais
Obra e autor desconhecidos.

Morfeu se instalou no meu travesseiro
Acionou minha caixa de memórias:
“Um museu com grandes novidades”
Novos tormentos que fazem parte da minha história
Abertura para diálogos sem a menor expressão
Acúmulo de vazio não preenchido.

Morfeu se instalou no meu travesseiro...














Olhares desencontrados

Olho para os teus olhos
Que olham para um olhar infinito de outros olhos
E tais olhos vagam pelo universo de outros olhos
Que se mostram como olhares distraídos.

Os meus olhos continuam a te olhar
E os olhos que me olham, não são os teus
Que insistem em olhar os olhos que não te olham.

Espero ansioso por apenas um olhar
Que me inspirará a descrever tais olhos
E a eternizar este teu olhar...





















Aflição e angústia

Cai sobre mim o fardo doloroso da angústia
Tribulações vindas de vários ângulos
Sem que se possa especificar o peso da aflição
Sendo assim, sou corroído a cada abertura dos olhos.

Omito o meu sofrimento a todos que me convém
Não quero a infelicidade daqueles que me sorriem
Nada podem fazer para clarear o meu túnel sem luz
Afinal, a minha caminhada está sombria.

A cada passo procuro me isolar sem deixar pistas
Afogo-me em lágrimas de desgraça e de dor
Não luto com armas convencionais
Nem me socorro de terapias alternativas.

Este fardo doloroso encontra em mim o transporte
Carrego-o por distâncias inimagináveis
E até suporto a sua fastidiosa tormenta
Que me joga no mais fundo dos poços.

Não cabe a eu julgar se mereço tal tristeza
Segura e persistente
Aliás, a ninguém cabe este julgamento
E apenas resta o consolo de estar vivo
Poder tragar até o filtro do cigarro
Debruçar sobre os papéis em branco
E versejar o sentimento dos aflitos.

Eis o momento em questão...




Havia um quadro...

Há um quadro pendurado na parede do quarto
Entre os meus olhos e a tal moldura
Está o vácuo que me coloca na escuridão.

Não consigo distinguir as pinceladas
Que se oferecem graciosamente à minha visão
Que se faz turva e sem transparência
Cerro os olhos e apago a esperança.

Havia um quadro pendurado na parede do quarto...























Funeral sem lágrimas

Permito ao meu ser o isolamento acompanhado
Nada me resta a não ser sumir
Mesmo estando visível diante de todos.

A fagulha da solidão despertou em mim
Não devo levar comigo os que me encorajaram
Seria a traição mais rude
E isso não está nos meus planos.

Deixo a minha imagem de felicidade
Assim posso dormir sossegado
E não haverá funeral com lágrimas...





















Não tenho armas

A agonia e o transe me convidaram a apontar a arma
Que eu mesmo limpei e calibrei
Para o meu próprio crânio
Receptivo às balas da verdade.

Não chamo a isso de suicídio físico
Tampouco covardia entre tantos errantes
E declaro ser um espetáculo da matéria putrefata
Que compõe esta nossa massa falida.

Aos julgadores seria apenas um julgamento próprio
Apontam para mim o dever do livre arbítrio
Tomar decisões claras e, sobretudo, livres:
Uma foice estripa a erva daninha.

O que a tantos parece um símbolo de insanidade
Fuga dos problemas que aparentemente não têm solução
A mim se escancara a hipocrisia dos “donos da verdade”
Poder que desafia os chamados e escolhidos
Escolha criada por seus próprios julgadores.

Não há agonia, nem transe
E também não possuo arma alguma
A não ser neurônios inconformados e sedentos
Por desmistificar todos os mitos da verdade.

Nunca apreciei pistolas automáticas
Nem me vejo carregando as tais armas brancas
Não me atreveria inspecionar suas miras
Tampouco usaria água límpida para limpá-las.

Meu crânio guarda consigo um cérebro que observa
Jamais se atreveria a ter impulsos violentos
Nem contra si tampouco contra alguém
Mesmo sabedor que é das falácias humanas.

Então, se restringe a utilizar a sua livre passagem
E caminhar em “câmera lenta” por todos os corredores.

Os que se dizem normais
Estes sim, passam lentamente por processos suicidas
Minam passo a passo seus inexpressivos cadáveres
Com tramóias e ocupações sem fundamento.

Os que se dizem seguidores da divindade
Maculam suas existências com caprichos dogmáticos
Seguem com os olhos internos fechados
E os tais olhos que formam olhares externos
Incompreensivelmente abertos…
Seguem leis criadas a partir das suas próprias necessidades
Condenam segundo as suas próprias versões do crime
Aniquilam qualquer possibilidade de julgamento
Ostentam o poder de conhecer a verdade
Falsa ou verdadeira? Não sei
Apenas movimento os meus membros superiores e inferiores
Quando sinto a necessidade de me movimentar.

Não, não tenho armas letais
Nem para uso próprio
Nem para fuzilar possíveis infratores
Aliás, não tenho arma mortal alguma...







Vozes invisíveis

Todas as vozes
De um sem número de vozes invisíveis
Saíram de meu quarto
Rumo a todos os ouvidos perturbados.

Não ouvi um só urro
Tampouco veio a mim qualquer lamento
Nem de cordas vocais
Nem de alto-falantes desatentos.

Muitos seres inofensivos
E outros tantos fariseus, que por seus próprios gestos
Estremeceram com os gritos mudos
E ficaram de “cabelo em pé” com tamanha gritaria.

Pelos meus ouvidos apenas passaram melodias serenas
Tão brandas quanto o silêncio de minha voz
Interna aos meus sentidos.

Vozes invisíveis e inquietantes...













Espetáculo fúnebre

O homem pintado com tintas pretas e tintas brancas
Lábios mórbidos e vomitando sangue
Gritava cânticos alucinantes.

Seus olhos paralisados e petrificados: injeção de “Fenergan”
Insinuavam noites de terror e vício.

Profecias fúnebres eram cuspidas pelas cordas vocais
Sua dança convidava os jovens e os idosos à morte
Cobras, lagartos, sapos e morcegos
Sopa quente no caldeirão de ferro.

O homem profeta e dançarino
Exalava o fedor de aguardente de cana
E espancava as cadeiras e as mesas.

Fim do espetáculo...

Na penteadeira do seu camarim
Água buricada e maços de algodão
Muitas bisnagas de corante vermelho
E ao fundo “Noturno” de Chopin.

Doses não homeopáticas de colírio “Moura Brasil”
Caixinha de música com bailarina
Dois cães Yorkshire e um gato siamês
Uma taça de sorvete de chocolate com caramelo
Latas e latas de refrigerante
Caldo de cana
E um belo divã azul.

Início do dia-a-dia...
Tudo para nada

Não quero apertar o gatilho
Desta arma que surgiu em minha mão
Não tenho coragem
E nem características heróicas.

Não quero ingerir este veneno fatal
Poção dada por um anônimo
Não tenho coragem
E sou avesso a líquidos amargos.

Não quero ser o corpo receptor de balas perdidas
As perfurações inesperadas me deixam entristecido
Não freqüento as filas de ônibus
Nem passo por bares congestionados.

Não quero ser abordado por meninos de rua
As abordagens violentas me assustam
Não me preocupa vagar pela madrugada
E nunca a “Polícia Militar” me revistou.

Um santo de barro exposto ao mundo
Juras e mais juras
Confissões e devoções
Um ser especial
Muito especial
Um santo de barro exposto ao mundo.

Moléstia contraída de um vírus celestial
Inferno para os poucos neurônios tempestuosos
Crânio invadido e chacoalhado
Unanimidade dos átomos universais.

Não costumo carregar armas brancas nem pretas
Jamais me ameaçaram de morte
E as fatalidades se assustam ao me ver.

Um cordão sagrado no pescoço do devoto
Orações e mais orações
Perdões, flagelos e abandono...

Uma bela face sorrindo e os olhos petrificados
Um belo olhar atencioso e os lábios secos
Um belo abraço amistoso e as mãos frias
Uma bela veste lilás e o corpo escondido.

Uma bela face atenciosa
Convite sem alarde ou fantasias inoportunas
Um belo olhar sorrindo
Cicerone para um turista desavisado
Um belo abraço lilás
Flores e tecidos para vôos prolongados
Uma bela veste amistosa
Repouso para um ex-santo de barro
Droga para uma doença sem cura
Refresco para um corpo quente e vulnerável.

Lágrimas
Desmaios
Emoção, muita emoção
Mais lágrimas e mais desmaios
Um corpo estendido numa morada alimentícia
Vermes
Muitos vermes festejando o banquete.

Lágrimas
Desmaios
Emoção… Tudo para nada...

Final inesperado

Meus ouvidos não se cansam
Ouvem a mesma melodia
E esperam pela mesma melodia:
Um compasso melancólico
Voz que não nutre esperança
Efeitos especiais rimando com versos tétricos…

Meus ouvidos chamam por “Noturno”
E um final inesperado...
























Proposta tentadora

O mar insiste em me convidar
Levar o resto do ser que monopoliza a escuridão…

Faz ofertas tentadoras:
Pérolas
Corais
E até mesmo uma sereia
… Uma tentação de proposta…

























Nada importa

O que importa:
o caráter?
… a caridade?
… o idealismo?
… o carinho?
… o afeto?
… a devoção?
… a oração?
… a matemática?
… a visão?
… o prestígio?
… a lealdade?
… a fidelidade?
… a amizade?
… a alimentação?
… o coração?
… a união?
… o sofrimento?
… o nascimento?
… a morte?

O que importa se importar?...











Ouvidos maternos

Mãe
Suponho que já não me ouves
Mas preciso te falar.

Mãe
Os fatos me aproximam das pessoas
E os fatos me afastam das mesmas pessoas.

Mãe
Crio histórias para conseguir chorar
Minhas lágrimas tomaram todo o meu corpo
Não transbordam, nem saem pelos ladrões.

Mãe
Minha corrida é sem governo
Os passos que me levam para o jardim
São os mesmos que me arremessam para o desfiladeiro.

Mãe
Vozes me conduzem para direções opostas
Não sei dizer não
E o sim que digo tem características insanas.

Mãe
Suponho que já não me ouves
E nem mesmo sei o que te falar.

Mãe... mulheres
Versos... alimentação

Mãe
Sei que já não me ouves… Falarei comigo mesmo…

O furo no lençol

O cigarro aceso entre os dedos da mão esquerda
Um gole de ar viciado devido às janelas fechadas
Um suspiro por estar solitário
Sobras de uma vida inexpressiva
Molestada por olhares cruzados.

O cigarro queimou o meu lençol...


























Falsas confissões

Confesso para esse papel em branco
Mesmo sabendo que os críticos detestam confissões
Ou até por isso mesmo
Que o meu ser está um lixo
Armazém de detritos
Aliás, confesso para esse mesmo papel em branco
Que acabo de cometer um erro
Pois o meu pensamento pensou o verbo ser
E talvez para justificar o valor da vida
Escreveu propositadamente o verbo estar.

Mesmo estas confissões me parecem falsas...





















O homem que descobriu o nada

Se deus é um ser lógico do universo
Sua origem não passa de uma equação matemática.

É mais fácil acreditar
Existe um bloqueio natural no pensamento
Somos vigiados por nós mesmos
A cada descoberta, um novo mistério
E assim, criam-se os deuses.

Para o mistério da morte
Pintaram um céu e um inferno
Almas cândidas num jardim fantasioso
Almas putrefatas num lamaçal de chama eterna
Criaram um juízo e também um juízo final
Éticas humanistas buscando um entrelaçamento cordial
Leis apropriadas para alguns humanos.

A morte vem nos buscar no instante exato
Propriedade matemática das divisões exatas
E o resto é resto
Sobra para o defunto apenas o grande final
Nada mais...

Pensamos como pensaram os primatas
Uma necessidade acompanha uma invenção
Uma curiosidade acompanha uma imaginação.

E a morte invade novamente o globo terrestre
Vidas e vidas jogadas em sepulturas comuns
Banquetes gastronômicos para vermes famintos
E a explicação é sempre a mesma
A morte vem nos buscar no instante exato.

Deus é mistério
E como tal
Vive na imaginação dos crentes.

Se a chuva cai sobre os nossos torrões
Viva! Viva o Deus Trovão!
Que clareou o céu com seus raios fulminantes
E gritou para as nuvens, canções de ordenança:
Chova!

E a terra se enche de água pluvial
As sementes agradecem e germinam
Despontam as plantas geradoras da nutrição
O homem feliz respira o ar da graça.

E viva o Deus Trovão!
Bondoso com os seus raios fulminantes
Misterioso com seus gritos ensurdecedores
Viva o Deus Trovão!

A paixão enfiada no peito dos amantes
Um menino com arco e flecha
Espalhando o amor por todos os cantos
Viva o Cupido!

Venenos trocados e punhais afiados
Serpentes picando reinos e exércitos
Cavalos de pau invadindo cidades receptivas
Viva o Cupido!

Ninfetas desejadas por anciãos da realeza
Anciãs independentes desejando pobres mancebos.

Amor animal
Amor vegetal
Amor mineral
Viva o Cupido!

Politeísmo
Uma avalanche de deuses
Deus pra isso
Deus pra aquilo
Deus pra aquele outro
Assim, as explicações são fáceis e baratas.

Monoteísmo
Deus único
Bondoso
Misericordioso
Sempre acompanhado por mensageiros do bem
Critério para os critérios humanos
Serventia aos poderosos e governantes
Medo para os servos e vassalos
Ditador de regras e do livre arbítrio.

Monoteísmo
Deus único
Maléfico
Impiedoso
Acompanhado por demônios do mal
Critério para a maldade humana
Combate sem trégua e novas conquistas
Pecadores e pecados
Déspota dos desejos e da ganância.

Se deus é um ser lógico do universo
Sua origem não passa de uma equação matemática...



De quem será esta face?

A face que ouço nesse espelho
Lábios pequenos e a barba por fazer
Nada me faz lembrar o dia de ontem
Onde os lábios pareciam os mesmos
Mas a face sem pêlos correspondia a outra face
Não a esta que ouço agora...

Se sou eu? Não sei
Apenas ouço seres de diferentes aspectos.

A voz que vejo nestas vestes
Camiseta de algodão e calça jeans
Nada me faz lembrar o dia de ontem
A calça parecia a mesma
Mas a voz do algodão me parecia branca
E a que coloco hoje tem a tonalidade azul.

Se é outra? Não sei
Apenas ouço vozes de diferentes sons.

Ouço atentamente o sabor dessa torta de chocolate
Nada me faz lembrar o dia de ontem
O creme parece o mesmo
Mas a voz do trigo era singular
E o fermento cantava melodias menores.

Se é outra? Não sei
Apenas ouço guloseimas de freqüências mais agudas.

O seu movimento me faz lembrar você
Então, por favor, nunca pare...


Atropelamento

O asfalto ainda estava frio
A chuva que caíra há pouco
Deixou-o com a temperatura ideal para receber um corpo.

A avenida fria e sem vida
Misturada a veículos quentes e sem vida
Aceitou o convite da chuva
E numa freada brusca
Mas nem por isso desleal
Não um, mas dois veículos
Dirigidos por seres com vida
Atropelaram o corpo que desfalecera no asfalto.

Os membros do infeliz transeunte
Ficaram sem comando e dilacerados
Seus miolos se espalharam pelo meio-fio
Não mais instigariam aquele pobre ser
A rumar por passarelas ou faixas de pedestre.

Logo surgiram olhares atentos e curiosos
Misturaram-se àqueles que ali chegaram
Para examinar se havia um resto de vida
E embora o corpo ainda estivesse quente
Não havia mais vida viva.

Meus olhos ouviram as freadas e as pancadas
Meus ouvidos presenciaram os rumores
Muitas perguntas sobre o infeliz atropelado
Posições tomadas sem quaisquer conhecimentos.

Meu ser vagava entre o acontecido e a vida…
O corpo pedia para ser retirado do local
E circunstâncias burocráticas impediam
Mesmo com o impaciente apelo do defunto.

Minha paciência era paciente com meu sentimento
Sentimento vil e cruel para tantos
Todavia, recheado de esperanças para este ser…

O corpo que falecera há pouco
Nutria a mesma esperança de atravessar a avenida
O sofrimento que abatia minhas necessidades
Me reconfortava com a luz que não existia
Mas que eu fizera existir na minha imaginação.

O que seria do defunto se tivesse atravessado a avenida?

Meu sofrimento não tem olhares curiosos
Nem mesmo salvadores de sobreaviso
Apenas sobrevive ao dia-a-dia dos infortúnios
E atravessa avenidas, incólume neste trânsito infernal
E caracteriza-se por se acoplar à vida.

Meu sofrimento resgata o pouco que me resta da vida
Não assumo posições de masoquista
Tampouco faço pouco caso das dificuldades
E mesmo atravessando avenidas de olhos fechados
Socorro-me à minha fiel percepção.

O que seria do infeliz atropelado se tivesse parado em outro bar?

Compreendo as tantas bocas falantes
Que não percebem o meu estado
E confidenciam segredos jamais revelados.

Meus ouvidos atentos ouvem, ouvem e ouvem…

Mistura de órgãos dilacerados
Retrato de um transeunte que não soube escapar…

Meus órgãos estão desgastados, porém vivos
E sei o que significa viver
Respirar… Entendê-la
Quem sabe?...





























O silêncio da solidão

Jogo-me quieto no silêncio da solidão
Não clamo desesperado por esta empreita
Arrastando-me por estas vias de isolamento…

Se avanço alguns passos adiante
Uma chuva infernal de desprezo me abate
Então, meus versos me socorrem deste infortúnio
E sei que neles haverei de me recolher…

Não choro as lágrimas de um ser ignorado
Estou certo dos sorrisos que me oferecem
Mas, tais gestos não suprem o meu reservatório
Há mais espaço para outros sentimentos…

Encaro a clausura não como dever
Sustento a firme idéia de buscá-la apenas por ausência
Não que desejo estar ausente
Mas por me sentir sem presença
Mesmo sabendo que me encontro em meio a tantos…

Jogo-me quieto no silêncio da solidão...












Não existe deus!

Deus não existe!

Julgador dos atos
Ditador das regras
Vingador através da natureza.

Deus não existe!

Pai desnaturado
Criador inescrupuloso
Benfeitor maléfico.

Deus não existe!

Bajulador de apenas um povo
Criatura estereotipada
Perdedor compulsivo.

Deus não existe!

Orações, meditações e reflexões
Troca-troca de favores
Criatura que criou o criador.

Deus não existe!

Sem crença e sem profanação
Aí sim, deus não existe
Mas, pode existir!




Nenhum olhar

Nada posso fazer
Se os olhares de tantas mulheres
Não se cruzam com os meus.

Poderia atribuir a este fato
Ao fato da minha inexpressiva postura
Mas outros tantos com feições mais monstruosas
Recebem o carinho de olhares afetuosos.

Deveria observar com mais freqüência o chão
Ou talvez suspender os meus olhos para o céu
Receberia mais compaixão destes contatos
Dois extremos e uma referência.

Nada posso fazer
Se os olhares de tantas mulheres
Não se cruzam com os meus...
















“Meu mundo e nada mais”

Devo fugir para exorcizar minhas virtudes
Deixar fechadas as portas que estão abertas
Inundar açudes com lágrimas perpétuas
Obedecer aos princípios básicos do anarquismo
Colaborar com os discípulos da seita “mente oca”
Afundar todos os barcos que passarem pelo canal
Deturpar as novidades que afloram na mídia
Sofrer calado para não animar os invejosos…

Devo regar as plantas de plástico da varanda de sua casa
Deixar transparecer que estou morto
Inundar o “Mar Vermelho” com corante preto
Obedecer às leis humanas para desviar a atenção
Colaborar com revistas e jornais esotéricos
Afundar as âncoras do ônibus espacial “Discovery”
Deturpar os comícios políticos na “Praça da Sé”
Sofrer ao ouvir o “Hino Nacional Brasileiro”…

Devo me infiltrar nos computadores do “Presidente da República”
Deixar vazar informações confidenciais da “Marinha Americana”
Inundar estômagos da censura com validade vencida
Obedecer sem máculas os gritos da “overdose”
Colaborar com o acréscimo do efeito estufa criando carneiros
Afundar a pedra que está no meu sapato
Deturpar as atitudes mais simples e mais puras
Sofrer em companhia dos deuses pagãos…

Eu
Apenas eu
Somente eu
Nem o mundo
Nem ninguém… Apenas eu...

E o último suspiro

Fujo até da minha falta de ar
Deixo-a vagando martirizada pelos bueiros entupidos
Sensação mostrada por violinos fúnebres
Pânico autorizado por neurônios descontrolados.

Meus ouvidos ouvem a canção que detalha a morte
Compreendem o final da ópera
Não há mais luz
Não há mais nada
Retrato sem imagens, nem espelho
Moldura estilizada para os tempos modernos.

Semeio o terreno com grãos geneticamente mutáveis
Crio um embaraço ao me opor em aceitar
Não sou o vento, tampouco a calmaria
Nem rudimentar, nem complexo
Máquina que esgotou a bateria
Aquele que não traz benefícios aparentes, nem os palpáveis
Círculo vicioso e viciado.

Fujo até do meu último suspiro...












Este mundo é uma merda

Conflito armado
Minado
Cerebral
Carnal…

Conflito religioso
Malicioso
Espiritual
Existencial…

Conflito visual
Bocal
Vaginal
“Caralhal”…

Conflito de relacionamento
Momento
Sofrimento…

Paranóia e destruição
Afeganistão sem fronteiras
Caralho!
Que merda de mundo!










Aparência aparente

Aparência
Aparente
Carne
Contaminada
Vaca louca
Febre aftosa…

Suor
Respiração ofegante
Tanque de guerra
Suicídio coletivo…

Aparência
Aparente
Aparentemente lógica
Lógico
A logística da globalização
Sem ação
Carnaval
Carnal
Perfume sem fragrância
Cérebros inúteis
Utilizados…

Aparência
Aparente
Carne contaminada…






Inútil

Aumenta os motivos para eu não viver
Se sou útil a alguns, não o sou a mim mesmo...































Fotografia da solidão

O retrato da solidão?

Espaço completamente vazio
E pior ainda, sem bordas...





























Tempestades

A música da chuva é sem criatividade
Sempre os mesmos acordes
E o solo jamais improvisa...






























Última lágrima
Resta o sabor da última lágrima
Doce ou acre? Não sei
Sei apenas que chove impiedosamente...





























Soma igual a zero
Meu universo enriquecido é tão pobre
Margeia a catástrofe do medíocre
Sou a soma de coisa alguma
Com a rebelião da sensatez…





























“Nobreza” e eu

Sem as luzes artificiais para combater o medo
E com o pânico instalado no meu ser
Recorro ao brilho natural das estrelas
Tantas estrelas de um céu aberto para os olhares.

O pensamento é mais rápido do que a vontade
E assim, a água se transforma em sangue
O botijão de gás explode em minhas mãos
O fruto cai da mão de um transgressor
O café queima os meus lábios inseguros…

O Cruzeiro do Sul me aponta o sul
Abre a minha mente para o sul
Jaraguá do Sul, Brusque, Blumenau
Café colonial e os olhos azuis de uma baiana
Florianópolis, Camburiu, Joinville…

O pensamento tem mais vontade do que o ser
Este ser que é escravo dos pensamentos
E estes pensamentos que são escravos das letras…

“Nobreza” é tão solitária quanto este ser
Pasta capim-gordura e eu como bolo de vinagre
Os nossos dentes rangem na solidão…

O pensamento e a solidão são irmãos gêmeos...







Concreto e abstrato

De concreto apenas o medo de viver
Tão abstrata é a vida concreta
Que da vida espera-se apenas a morte
A morte para se viver…

De abstrato apenas o medo de morrer
Tão concreta é a vida abstrata
Que da morte espera-se apenas a vida
A vida para se morrer...
























Desprezado

Não existem mais olhares para o meu olhar
Desviam nos momentos mais sublimes
Ou apenas são olhares sem efeito.

Meus olhos seguem o chão
Não acreditam que o ar tenha o olhar
Pois não existe olhar que me olhe.

Sou como as flores murchas
Olhadas com pena
E atiradas ao lixo…

Meu ser está apagado
Vivo apenas de sonhos e fantasias
Sou o sono que não começou
Sou o desprezado, o não recebido
A chama que se apagou…

Sou o mal olhado
O visível que ninguém vê
O instrumento que ninguém ouve
A estação sem sintonia
O versículo sem capítulo
O filme sem roteiro…

Sou a realidade atrofiada pelo tempo
O destino que nunca se cumpriu
O memorando nunca lembrado
O paraninfo sem formatura
O anel sem dedos, o colar sem pescoço…

Não existem mais olhares para o meu olhar
Desviam no momento mais sublime… ou apenas são olhares sem efeito...
Vida sem expressão

É contagiante inventar o antídoto
E mais
Esconder a fórmula numa arca perdida
Muito bem perdida…

É misterioso suportar a dor
E mais
Abraçá-la sem saber dos resultados
Que sofreram os demais…

Sou o avesso que não dá certo
A grade que não aprisiona
Muito menos a voz que liberta
Sou o emblema da decadência…

Às vezes, me pego numa encruzilhada
Ao norte a morte
Ao sul a morte
A leste a morte
E a oeste a morte
Então, restam-me poucas opções...

O alimento ofertado com lágrimas
O suor que faz esquecer as derrotas
Nem pranto tampouco labor
Apenas a sentença do tempo…

Vida sem expressão
Inexistente para qualquer proveito…

É malicioso confundir os pensamentos
E mais
Soterrar todos os objetivos
Planos resgatados da mentira…

Minha vida não tem expressão
Camuflo os meus próprios ideais…

Sou assim
Ou seja, inexisto...




























Mensagens


O olhar da verdade
Quando olho no espelho sinto a nítida sensação de estar sendo espionado.

Intervalos
Quando estou de bem com a vida
Raciocino como um ser
Irracional
Desconfio ser
Humano…
Noites iguais
Estava ansioso por saber
Como seria a minha primeira noite
Agora sei, saí para escrever
É sempre assim...
Estrela amiga
Hoje te escolhi cara estrela
Pra saberdes das minhas confissões
Piscas por entenderes
És fiel aos meus segredos
Orgulho-me de te conhecer.

Cães vigilantes
Boa noite cachorrada
Ou seja, tenham uma boa noite
Cachorros que ladram na vizinhança
Pela madrugada afora…
Desnutrição
Haverá alimento para tantos abutres?
Sem ideologia
A convicção ideológica nos afasta da paz.

Contato zero
A ligação entre eu e todos? Nenhuma. Sou apenas um ângulo incoerente de algum triângulo inexistente.
Falsos propósitos
Sociedade civilizada é sinônimo de despotismo.
Implosão
Percebo que a lua cheia murchou
Que uma nuvem de gases letais
Transpassa uma galáxia moribunda…


Realidade dos amantes
O que seria das feias se não fossem os homens cegos?
E o que seriam dos feios se não fossem as mulheres cegas?


Anormal
Sinto ser um ser mitológico.

Escritos incoerentes
O que um imbecil como eu escreve, jamais deveria ser levado a sério.
Despachado
Deveria desaparecer sem deixar pistas. Por um período, não sentiriam minha falta. Por um breve tempo, poucos sofreriam, mas a tendência natural seria o esquecimento.
Fantasma
Devo ir à festa dos invisíveis, pois lá estarei entre os meus.
Miséria cultural
Se as minhas obras servirem para algum propósito, publiquem-nas. Sou tão inexpressivo que provavelmente as chamas irão queimá-las. Talvez se perderão no fogo da miséria cultural.

Devoradora
Por trás da verdade há sempre a fantasia, e esta, claro está, consome toda a verdade quando se imagina como tal.

Falsa democracia
Não acredito nas sociedades igualitárias. Não acredito nas sociedades fraternas. Não acredito nas sociedades liberais. Sempre existirá um líder. Então?
Balelas
A consciência cívica nada mais é que o ópio injetado no cérebro e no coração de todos os seres humanos.
Estação errada
Quero fugir da vida. Estou aqui por algum engano.

Últimas cartadas
A mão que fere é aquela que restou do corpo.
Contagem
Na teoria, a guerra não faz vítimas, há mortos. Na prática, são todos cadáveres.
Invasão
Apenas paramos para refletir quando o nosso quintal é destruído por uma catástrofe inesperada.
Poder
No reino dos animais irracionais existe a cadeia alimentar. No reino dos animais racionais existe a cadeia sócio-econômica.
Sono profundo
A melhor sensação do sono é quando sentimos que estamos mortos.
Controvérsias
O bem não é o bem para o mal.
Fome
A solidão é mais rigorosa quando estou de estômago vazio.
Nome
O nome de deus é Deus.


Ócio

A ambição dos meus sonhos – não custa nada sonhar, aliás, o preço que se paga por ser um sonhador é a completa inoperância –, é ter diante de mim faces que foram ou são motivos de lembranças. Nestes sonhos, o que mais me incomoda e ao mesmo tempo me conforta, é saber que estes sonhos não passam de sonhos. Seria realidade, se este meu ser obtivesse êxitos ou saísse do marasmo em que normalmente se encontram os sonhadores. Um atestado de óbito seria plenamente justificado a tantos devaneios.

























O vício da arte de sonhar

A arte de sonhar é tão viciosa que se chega ao cúmulo de se sonhar durante alguns intervalos. Pensa-se da possibilidade da queda daquele avião, que neste instante cruza o céu repleto de passageiros inocentes, ou não, e também da possibilidade da queda arrasar aquela favela logo abaixo, esta completamente inundada de seres humanos, e ainda muitos animais domésticos, ou não. O vício do sonho.


























Mutação

Normalmente, a visão de um sonhador é turva. Não por problemas oftalmológicos, nem encefálicos. As imagens são nítidas, porém, chegam transfiguradas aos olhos, pois estes se ocupam de outras visões diferentes daquelas recebidas pela via de luz natural.




























Ressuscitar os sonhos

O sonhador se cansa de seus próprios sonhos. Abandona tais sonhos na ignorância ou no esquecimento de seu ócio. Desdenha do próprio sonho, e então, o ressuscita dias adiante.





























Adversários da vida

O sonhador abomina os práticos por estes não apenas sonharem, mas também por transformarem os sonhos de outros em realidade. Os práticos são práticos, aliás, o mundo é prático e talvez esteja aí a resposta, pois aos olhos do mundo, o sonhador é lunático (sic), e até insano.




























Opção

Naturalmente, os sonhadores estão sempre solitários, mesmo que estejam devidamente acompanhados.






























É domingo!

Hoje é domingo. Pelo terceiro dia consecutivo driblo a minha insana incapacidade de dormir. Aos domingos, todos os seres normais costumam acordar mais tarde. Também se ocupam de almoçar em família – aquela macarronada com frango, ou então, aquele apetitoso e carnavalesco churrasco dominical. A preguiça toma conta de todos os lares, mostrando a todos que somos animais também hibernantes, bastando para isso abdicar dos nossos afazeres.
A organização do trânsito misturada ao silêncio deixa as ruas e avenidas com um semblante calmo e pitoresco. Tenho preguiça de sair e observar a preguiça estampada nas faces de todos os transeuntes, e também daqueles que se encontram devidamente motorizados.
Hoje é domingo. A minha solidão não me permite estar acompanhado. Se desejo comer aquela macarronada com frango ou aquele churrasco, pratos tão típicos dos domingos em família, resta-me procurar um restaurante também típico, e aí sim, degustar um momento gastronômico familiar. Estes restaurantes e estas churrascarias costumam estar repletos de famílias aos domingos: crianças, velhos, velhas, tias, tios, cunhados, cunhadas, sogros, sogras, além do indispensável casal.
Não possuo automóvel e minhas deslocações para tais recintos se fazem pelas vias naturais do meu corpo. Troco passos e mais passos nestas caminhadas.
Algumas famílias levam os seus amáveis companheiros caninos nestes estabelecimentos, e mais, sabem que tais animais são proibidos dentro destes recintos. Devido a esta proibição e incapazes de se separarem de seus estimados “filhinhos”, acabam deixando-os com os incansáveis manobristas, que guiados pela necessidade financeira, transformam-se em babás destes cães mimados. Querendo ou não, estes seres prestativos procuram satisfazer de todas as maneiras possíveis e imaginárias as vontades e também todos os desejos fisiológicos destes tão queridinhos animais.
Hoje é domingo. Não me animei a ir a um destes ambientes gastronômicos familiares. Primeiro, não me sentiria à vontade tendo a presença quase certa de inúmeras famílias. Segundo, não tenho o dinheiro suficiente para satisfazer este desejo… mas, hoje é domingo.
Acordei e a minha preguiça apenas acompanhou o meu corpo, que não respondeu a nenhum chamado externo e também interno. Quanto aos chamados externos deixo claro que não considero o aparelho celular como um ser humano. Ele apenas transmite e recebe vozes humanas.
Foram aproximadamente doze minutos para que toda essa massa que envolve o meu ser físico saísse sem reclamações da cama. O corpo esteve separado da mente por estes mesmos doze minutos. Enquanto o corpo padecia no ócio, a mente se ocupava de viajar por todas as paredes e teto do quarto. Ao menos conseguia se desviar da janela e da porta. Nisso, a solidão leva enorme vantagem, pois se estivesse acompanhado seria alvo de mil perguntas e considerações, embora esteja certo que não responderia a nenhuma delas, conscientemente ou não.
Quando me levanto da cama, não consigo despertar. Necessito escovar os dentes com os olhos fechados e, sobretudo, tomar um delicioso banho com a temperatura da água beirando o zero grau. A ducha acompanhada de água em seu estado quase que natural é tão refrescante, e também desperta o corpo para quaisquer afazeres. Mesmo em se tratando da estação mais quente do ano, o verão, é próprio do ser humano ligar o chuveiro na temperatura máxima. Prefiro sinceramente a sensação natural.
A minha mente sonhadora não se refresca durante o banho. O ambiente é solícito a esquecer a mente, porém a minha mente mente a mim, e não me dá sossego nem mesmo neste agradável cômodo. Atormenta a paz das gotas d’água que caem silenciosamente do chuveiro, já regulado na temperatura adequada. Às vezes, sinto que estas mesmas gotas d’água necessitam de paz, e apelam para o frescor do sabonete de erva-doce, desviando temporariamente a minha mente desta situação embaraçosa e desnecessária.
Certa vez, quando me enxugava de um banho longo e desnudo – não pela condição do meu corpo nu, mas por estar livre dos tempestuosos pensamentos –, a minha mente, não contente com esta condição de um ser sossegado, desviou a minha atenção e fez o seguinte questionamento: sou paulistano, paulista ou brasileiro? A pressa em pensar e a tarefa de resolver tais questões me conduziram a uma cédula de identidade indeterminada. Esta dúvida, que já me levou a situações embaraçosas, também acontece quando enterro a cabeça no travesseiro. Muitos ruídos nunca antes revelados se posicionam de tal sorte que um tremor sem igual e sem precedentes, me mostra ser um ser brasileiro, e mais, sem fronteiras determinadas.
As roupas que um sonhador veste não vêm ao caso. São apenas indumentárias sem propósito e destinadas a ninguém. Mas, mesmo sem demonstrar, todo sonhador é naturalmente vaidoso consigo mesmo, e mesmo que demonstre total desprezo pelo vestuário, é um ser vaidoso. O que me agrada é o que uso, mesmo sabendo que o que visto nunca seja bem visto pelos que me vêem. A aparência é importante, porém a mentira transformada em verdade é mais importante e costuma prevalecer. No vestuário sou adepto da verdade, mesmo que esta tenha um ar de mediocridade aos outros.
Sobre os ruídos que ouço quando enterro a cabeça no travesseiro, é importante relatar o seguinte: todos os insetos rasteiros se apresentam durante esta festa. Ouço até mesmo os ácaros. Não escapa ruído de animal algum aos meus ouvidos cobertos pela fronha. As baratas, esta maldita criação, andam pelo meu quarto, ou mesmo pelos quartos vizinhos, felizes e, sem o menor escrúpulo, zanzam pelos meus cadernos amarelados e pelas minhas canetas sem tinta. Prefiro pensar que elas não andam por cima da minha escrivaninha.
Hoje é domingo. Resolvi observar os aviões que parecem flutuar no ar ao se encaminharem para a avenida de aterrissagem. Esta rodovia aérea virtual por onde trafegam estes pássaros metálicos possui uma precisão impressionante, talvez até mais precisas que as próprias rodovias reais. Sento-me a um banco de uma praça mal cuidada. Tão mal cuidada quanto todas as outras praças mal cuidadas desta mal cuidada metrópole. São Paulo é depósito de excrementos, e tais habitantes pouco ligam para os seus parques e praças. E mesmo com todo este desconforto e toda esta sujeira, a visão me é favorável. Por um longo tempo acompanho o trajeto das aeronaves, que se preparam para o pouso em Cumbica. As menores parecem voar mais rapidamente que as maiores. Prefiro a lentidão aparente dos pássaros metálicos imensos. A sensação de que estão parados no ar me causa delírio. Confesso que, como tantos outros esperei pela explosão de uma das aeronaves – o espírito justiceiro de Bin Laden se dissipou por todo o planeta. No fundo do âmago, todos desejamos ver catástrofes e justiça, mesmo que nunca falemos a este respeito. Aquela bola de fogo seria bem-vinda neste momento. Durante horas e horas esperei por tal fato e tal fato não veio. E hoje… ora! ainda é domingo.
Aprecio o “Fran’s café” da Avenida Luis Dumond Villares, todavia, não suporto o café “Mellita” que por lá servem. Consigo me sentar à mesa sem permanecer sozinho por muito tempo. Os freqüentadores mais assíduos também não suportam o café “Mellita”. Os parâmetros de assuntos são questionados por alguns sonhadores solitários que por lá jogam suas âncoras. Mesmo nestes lugares, onde os diálogos passam pelos mais variados temas, ainda sobra espaço no cérebro para pinceladas em temas não discutidos.
Hoje, e especialmente hoje, ainda é domingo e tive o prazer ou desprazer de me sentar à mesa de outros sonhadores. É claro que estes companheiros de viagens estavam entorpecidos com alguma erva daninha, mas isso não tira o mérito dos seus sonhos. Embalados por metamorfoses cerebrais, estes camaradas atravessaram desertos; voaram como águias por desfiladeiros com imensas cascatas; entraram num salão do velho-oeste americano atirando em todos que ousavam olhá-los com olhos de traíra; percorreram as ruas sujas do “Hallen” apagando as fogueiras que serviam para aquecer os mendigos do bairro; e atiraram pedras nas últimas janelas com vidros; dançaram músicas flamencas com mulheres maravilhosas vestidas em preto e vermelho, além é claro, de mostrarem os seus saborosos seios quase nus; invadiram Cuba depondo Fidel e liberaram o charuto e todas as praias a todos da Ilha; enfim, atravessaram o planeta visitando as mais exóticas paisagens, e aterrizaram todos sorrindo na capital paulistana. Acompanhei, literalmente, cada passo dessa excursão. Bebi a água que restava no cantil, sem pensar nos camelos; quebrei as asas do ultraleve quando não mais me interessava o “Gran-Cannyon”; apanhei todo o dinheiro que caíra de uma das mesas, onde quatro ilustres pistoleiras jogavam cartas; apaguei a fogueira e cobri a lua com uma nuvem negra, além de que, desafinei a guitarra impossibilitando os apreciadores de música espanhola de continuarem o ritual; submergi a “ilha solitária” com todos a bordo, inclusive os meus companheiros da mesa; enfim, destruí pouco a pouco todos os sonhos dos meus amigos.
O relógio “Cuco” da casa de uma amiga anuncia o final deste domingo interminável. Doze notas musicais e o fim de mais um dia.
É justificável escrever uma carta endereçada a si próprio. Não haveria destinatário para ler tantas situações emaranhadas.

Malditas baratas!

Malditas baratas! Nem mesmo aos domingos esse sorrateiro inseto me dá descanso. Invadem o quarto, munidas de armamentos caseiros. Desconheço qualquer arma antibarata com eficiência absoluta. Consegui eliminar apenas uma delas. Já não é mais domingo.




























Tabagismo

Abençôo a todos os produtores de tabaco. Todos. O que seria da minha espécie se não fossem estes abnegados “investidores químicos e psiquiátricos”? Fico sem me alimentar por alguns dias, porém não fico dia algum sem o cigarro. Faz parte do ar que respiro. Faz parte do suor que transpiro. Faz parte do odor que exalo. Faz parte até do visual do meu cabelo.
Nele podemos conseguir um complemento respiratório e um analista psiquiátrico por apenas alguns Reais.
O câncer, a impotência sexual, a dependência química, a insuficiência respiratória, o enfarto no miocárdio, o mal causado a terceiros são apenas problemas sem a devida gravidade. Sou a favor da liberação total e irrestrita de todas as drogas conhecidas. Sem elas, o que seria da humanidade? Não haveria tantos sonhadores e até o ar que respiramos seria menos poluído. É um crime proibir tal crime. Tenho insônia e sou um solitário compulsivo. O que seria da minha vida se não fosse o tabaco?
Incompreensão. Esta é a palavra certa para esta perseguição ao tabagismo. Deixem uma criança viciada em televisão sem televisão. Ela irá atrás de outro vicio. Aliás, nós estamos sempre correndo atrás de outros vícios.
É estranho. Não é mais domingo e o ócio continua presente neste corpo sedento de ócio.
Acendo mais um cigarro – que delícia! –, assim terei os meus pulmões ocupados e o sistema nervoso plenamente equilibrado.











Falsas promessas

Os transportes coletivos, e aí me ocupo de escrever apenas dos ônibus, começam a transportar os trabalhadores logo pela manhã, aliás, antes mesmo que a manhã se torne manhã, eles já estão transportando os trabalhadores, essas incansáveis “formigas diárias”: orgulho e sustento de todo país; assunto de todos os discursos proferidos por políticos durante as campanhas eleitorais. “Meus caros e digníssimos trabalhadores”. Escuto sempre atento a estes pronunciamentos, mesmo porque, é através deles que defino a minha opinião sobre a classe política. Acredito nos seus propósitos (deles), apenas nunca acreditarei naquilo que falam.
Realmente, os trabalhadores são as locomotivas que movem este imenso comboio de vagões, ou melhor, são eles que tracionam todos estes vagabundos.
Eu pago o preço do ócio.



















Ordens

Para os sonhadores solitários não existe segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo ou qualquer dia da semana. A diferença está apenas no movimento, ou seja, na lei gravitacional.
As pessoas abandonam o estado de preguiça natural e assumem fantasias com aspectos bem caracterizados, tal qual é a responsabilidade. A impressão que nos passam, quando olhamos sem estar devidamente atentos, é um entrosamento sincronizado entre todos. São ordens transmitidas, geralmente por quem não sabe executar, e ordens recebidas, especialmente por aqueles que aguardam o momento exato para não cumprir tais ordens. É o jogo quotidiano do “sim senhor, não senhor”. Claro está que, alguns ordenam e também sabem executar, e por outro lado, existem aqueles que jamais imaginariam subir um degrau nesta escalada de valores trabalhistas.




















Bar dos pernambucanos

A poucos metros de onde moro, na Rua José Debieux, Santana, São Paulo, existe um bar sem muitos atrativos, ao menos para os maníacos por bar ou com gostos mais requintados, porém, parece-me um estabelecimento propriamente temático e claramente freqüentado pelos irmãos pernambucanos. Geralmente, estes indivíduos estão em grupo e sempre dispostos a alguma festa típica, mesmo se não houver motivos. Falam seu dialeto, preferencialmente com o volume da voz no último estágio. A pressa como conduzem seus diálogos transparece que não se importam com outros interlocutores, bastando a eles o monopólio do estabelecimento. Como as suas freqüências são freqüentes, o dono do bar não se importa com outros fregueses.
A população pernambucana nesta região cresce a uma proporção quase que geométrica. Devido a este fato – não sei se pesquisado pelo proprietário –, não se torna necessária a presença de outros povos no estabelecimento. É um bar paulistano, todavia, tipicamente pernambucano.
Apenas uso este bar para comprar refrigerante, que refresca as minhas tardes de verão.
















Síndrome da barata

Volto a escrever sobre as baratas. Não passa um dia sem que este terrível e inocente inseto não declare guerra aos meus pobres sentidos. Imagino, então, compulsivamente, que existe um programa articulado de ataque, confeccionado por alguma associação das vítimas das baratas.
Mesmo engajado em diversas entidades classistas de esquerda, comumente clandestinas ou desacreditadas pela mídia, posiciono-me unilateralmente contra estas associações terroristas das vítimas das baratas. Usam a surpresa e um sincronismo visto apenas nos filmes de espionagem. Trocam vítimas manipuladas por vítimas inocentes. Têm alvos pré-classificados, porém sem o mínimo controle de quem pagará o preço pelo “sistema diabólico”. As diferenças entre estas organizações são as vítimas. Também são inocentes, desprovidas de quaisquer armamentos defensivos, aliás, nem mesmo estão qualificadas para tais espantos.
É cruel o martírio vivido por uma pessoa atormentada pela “Síndrome da Barata”. Malditas baratas!


















O barro incompleto

Deus criou o corpo do homem, e, ocupado com outros afazeres, se esqueceu da mente do homem. Lúcifer, preparado para atacar qualquer deslize da divindade, se ocupou de manipular o cérebro desta imbecil criação.
Não choro por pensar que penso, e também não sorrio por esquecer de pensar; somente declaro como prazer, que os meus neurônios sejam assassinados a cada pensamento maldito ou malvisto, ou sei lá.
Quando deus se apercebeu das suas erratas era tarde demais. Legiões mais habituadas com os costumes dos povos, já haviam invadido a área reservada. Os sonhadores são crias de Lúcifer, apenas pelo comportamento desleixado do onipotente, que devido a sua impotência ou mesmo à sua desfeita à raça humana, deixou que esta espécie de humanos se originasse. A atenção propiciada pelos mensageiros do senhor das lamas e das chamas aos humanos merece um capítulo à parte. Devido à precariedade que se encontra a minha memória, talvez justificada pela invasão das baratas, esquecerei de abordar este tema.
Deus soprou o barro e se esqueceu de soprar o interior do barro.

















“Música para ver imagens”

A razão não vê imagens em qualquer melodia. Os olhos naturais não vêem imagens nos sons transmitidos por instrumentos musicais.
De quem foi a idéia de interromper a festa?




























Coqueiro interiorano

Alguém de vocês, pacientes leitores, já se imaginaram passar por um coqueiro. Plantado numa esquina de uma cidade do interior, não podendo fugir do roteiro – folhas pra lá e pra cá? É tão óbvio quanto a aparição do papa na sacada da “Praça de São Pedro”, no Vaticano, todavia, e se o papa não aparecer? Insiste-se até o derradeiro segundo? E qual será este segundo? O que isso tem a ver com os tais coqueiros? Sei lá!
Todas as pessoas olham espantadas àquele coqueiro humano. Passam uma, duas, até três ou quatro vezes pelo mesmo local, esperando não encontrar mais aquele espécime raro. E lá está ele! Plantado, e com raízes profundas, dispostas a buscar o veio d’água, esteja ele na profundidade que estiver, e assim, valerá o risco? Quem deve responder a esta questão é o coqueiro. Ele foi o perfeito idiota que se plantou naquela ensolarada, todavia, esquina por demais charmosa.
O povo do interior ainda se afugenta de algumas novidades. Ou devemos considerar o coqueiro como um desconforto aos princípios básicos das civilizações provincianas? Repito, o coqueiro é devedor, ainda que em tempo algum, desta resposta.
O coqueiro, sensibilizado, responde: o azul do céu de Araras não é o mesmo azul do céu de São Paulo. O sol que arde por cá, não é o mesmo sol que arde por lá. A maneira de se cumprimentar por cá, não é a maneira de se cumprimentar por lá. Os salgadinhos vendidos nos bares de cá, não são os mesmos salgadinhos vendidos nos bares de lá. Os passos das pessoas de cá, não são aqueles passos apressados e desencontrados das pessoas que andam por lá. O charme dos carrinhos de sorvete de cá, não são como a grosseria dos carrinhos de sorvete de lá.
No céu do interior falta o charme e a beleza da poluição. Aquela massa densa e ofegante de monóxido de carbono não embeleza nem irrita os olhos dos olhares interioranos. Isso. O céu do interior é monótono. As nuvens são sempre as mesmas. Não existe aquele espírito nômade das nuvens metropolitanas, estas sim, bailam nos céus, e carregam consigo amores e desamores, rumando de leste a oeste, de norte a sul com a mesma desenvoltura, rapidez e sensibilidade, enfim, passeiam completamente descontraídas e desembaraçadas pelo céu. São dinâmicas. As nuvens no céu do interior são extremamente enfadonhas e sonsas. Irrita o mais calmo dos pacientes. Pode-se brincar de desenhos imaginários olhando para as nuvens interioranas. Há brincadeira mais cretina que imaginar?
Os raios solares do interior são como lavas de vulcão colocadas próximas ao nosso delicado corpo. Queimam nossa pele sem pedir licença. São raios mal educados pelo seu criador. Um brilho sempre brilhante, sem falhas nem interrupção. Na metrópole é diferente, pois os raios solares aparecem e somem num piscar de olhos. Não têm tempo suficiente para depredar com a nossa meiga epiderme. O sol é gelado na capital.
As mãos no interior servem também como instrumento de abordagem. Levanta-se um dos braços – preferencialmente aquele que no momento estiver desocupado –, juntando todos os dedos da mão – se é que há dedos na mão do abordador –, e então, num processo estabelecido como regra, grita-se o nome do cumprimentado o mais alto que puder – desde que não seja mudo, ou tenha problemas nas cordas vocais, e também se deve observar se o interlocutor não é surdo. Nas ruas e avenidas paulistanas, os transeuntes e também os motoristas fazem questão absoluta de passarem por todos os transeuntes e também por todos os motoristas, e, não dão a mínima atenção, visto que, necessitam ocupar os espaços deixados vagos por transeuntes e motoristas que abandonaram por qualquer motivo os seus espaços. Ocupar desordenadamente e estupidamente espaços vagos faz parte da tradição paulistana. As mãos acompanhadas dos seus respectivos braços, geralmente se ocupam de achincalhar os mais desatentos. As vozes ouvidas são para mandar os desligados para lugares não muito recomendáveis. São mundos completamente diferentes nestes aspectos e em quase tudo não se parecem, nem mesmo mantém qualquer semelhança. O cumprimento nem sempre é verdadeiro, enquanto isso, o xingamento é sempre verdadeiro, embora nem sempre é aceito de bons grados.
Prefiro não comentar sobre assunto gastronômico. Este, ainda que de bom grado, me dá fome. No momento, e este é o momento, não estou com dinheiro suficiente para satisfazer o meu amigo estômago: nem na capital, tampouco no interior. Assumo, periodicamente, um jejum forçado. Nutrir o meu organismo com os nutrientes básicos e necessários é o mínimo que exijo, embora quase sempre – e escrevo quase sempre porque é quase sempre – o meu estômago não receba a sua parte no acordo que fizemos quando do meu nascimento. Por estas, e também por outras razões que não vêem ao caso, me recuso terminantemente a escrever, a falar e até mesmo a pensar sobre guloseimas, aliás, neste momento a considero como uma palavra maldita.
Deixo de mencionar os prazeres vividos na degustação dos sorvetes pelos mesmos motivos mencionados anteriormente a respeito da gastronomia. Sorvete é alimento. E alimento é uma palavra rara no meu vocabulário da vida como a vida é.
Prefiro os passos lentos dos andarilhos interioranos. Todos pensam que sou um coqueiro estático e sem função alguma. Não. Tenho os meus movimentos cadenciados e ritmados de acordo com a minha inoperante rapidez, ou seja, sou como o bicho-preguiça que se movimenta apenas para não estar sempre no mesmo lugar. Seria preguiça demais, mas não.
As passadas paulistanas são sempre frenéticas e instáveis, motivo pelo qual existe por lá um sem número de fisioterapeutas. Afinal, os músculos, principalmente o das pernas, se distendem com extrema facilidade, pois são obrigados a exercícios descompassados e sem o menor sentido prático. Rapidez. Parada brusca. Rapidez novamente. Parada brusca novamente. E assim até conseguir marcar uma consulta em algum fisioterapeuta – a grande maioria destes profissionais não têm registro em qualquer conselho médico, mas confesso que nunca perguntei a um deles se esse registro é necessário. Não há corpo humano que suporte a tantas variações perniciosas. Repito, prefiro as poucas variações, e, preferencialmente, as passadas lentas do interior.
Será que este coqueiro que lhes escreve, respondeu a curiosidade de tantos curiosos? Conseguirá o mais intrépido dos curiosos chegar a este ponto e entender a finalidade de tanta inutilidade?










Novamente a maldita barata!

Pode até mesmo parecer doentio, aliás, é doentio. Aquela maldita barata esperta, que não matei por ser esperta, se escondeu novamente dos meus olhares frios e assassínios. Onde está aquela maldita barata esperta. Maldita barata! Barata maldita! Maldita! Maldita! Maldita! Maldita! Maldita!




























Sonhos eróticos

Prefiro dormir com a certeza de que não há mais este inseto travesso, esperto e maldito no meu quarto. Meus sonhos, também travessos e ejaculantes, clamam por movimentos mais insinuantes deste meu corpo, que não parece estar travesso, contudo, considero, sensibilizado, o chamado ardente do meu travesseiro ditador, porém democrata. E lá vou eu para mais alguns momentos interessantes de sono erótico. Até mais!


























Quarenta e sete horas...

A lâmpada estava apagada. A luz radiante do sol colaborou de certa maneira em não aparecer nesta madrugada. A calmaria dos automóveis e ônibus contribuía com o silêncio desejado. As temidas baratas deram uma trégua nesta nossa guerra particular. Mesmo ingerindo cafeína em excesso sentia-me apto a dormir o sono dos justos, se é que os justos dormem por qualquer motivo. As quarenta e sete horas que passei acordado, me deixaram com os reflexos sem o mínimo reflexo. Não sentia mais o corpo, embora ele estivesse ali presente e com deveras medo daquele tão referido inseto. Segurei a minha cabeça com as pontas dos dedos das mãos e contei calmamente, oitocentos e trinta e sete pequenos e saltadores carneiros. Preocupei-me com a cerca de arame, a qual estes carneirinhos pulariam. Construí-a, sem aquele temível arame farpado, criminoso instrumento de dolorosas feridas – durante a minha infância socorri inúmeros amigos que se rasgaram ao tentar passar por esta maldita barreira. Felizmente, nenhum dos carneiros esbarrou na cerca, construída propositadamente com vinte e três centímetros de altura. Baixa para os padrões rurais, porém, segura para os meus fins humanitários.
Mudei a cena do sonho: abandonei os saltos dos carneiros, pois não mais estavam dispostos a arriscar-se pulando aquela cerca. Consta também que aumentaram consideravelmente a altura da cerca. Fiquei com piedade daqueles bons carneirinhos, pois uma parte considerável do rebanho havia transposto aquele indelicado obstáculo – o mais estranho é que no início o arame não era farpado. Entrei, sem vacilar um só instante, na perfeita organização de um formigueiro de saúvas. O efeito não fora o desejado. Acendi a lâmpada e abri vagarosamente os olhos.








Desculpas...

Os feios, assim como este que lhes escreve, insistem em desqualificar a beleza física. Promovem o intelecto como a única e talvez a última salvação do planeta terra. Na realidade, gostaríamos imensamente que os nossos dotes físicos tivessem características diferentes dos atuais, e se não houver cirurgia plástica, eternas. Uma pele facial sem tantas cicatrizes – crateras enormes que conseguimos durante a nossa adolescência, em função das inúmeras “espinhas” adquiridas a base da comilança de chocolates, muitos e muitos chocolates; olhos mais vivos e insinuantes – deixo claro que não há a necessidade de serem azuis ou verdes; cabelos aparados segundo a moda; um corpo sem gordura e sem ossos aparentes. Um verdadeiro deus grego. É assim que nós os feios, gostaríamos de ser.
A feiúra faz os feios tomarem algumas decisões chatas e longe dos padrões convencionais, tais como: ler uma infinidade de livros – de preferência, os clássicos que ninguém lê; colecionar revistas de conhecimentos gerais – é comum encontrarmos estes excluídos comprando revistas científicas; durante o período escolar se tornam os principais C.D.Fs. da escola – certamente, nunca “passam cola” aos companheiros de classe; assistem a filmes de produções francesas, italianas, russas, indianas, chinesas e iranianas, afinal, é intelectualmente promissor conhecer o desconhecido; costumam freqüentar teatros que apresentam as peças clássicas, afinal, é conveniente esta busca cultural; não necessitam dos folhetos quando assistem as óperas, pois conhecem perfeitamente o idioma utilizado pelos artistas; são fãs de documentários; entram naqueles museus recheados de velharias, afinal, conhecer a história é tão marcante quanto conquistar um olhar da menina mais bonita da cidade (sic); freqüentam exposições de quadros e esculturas; o passatempo preferido são os programas mais complicados de computador ,aliás, eles conhecem exatamente todos.
Outros feios, impossibilitados de reunir tão vasto conhecimento, tornam-se figuras extremamente simpáticas ao meio. São peritos em piadas e charadas. A risada está sempre presente ao seu redor. Alguns mais audaciosos arriscam-se como artistas, tais como: musicistas, atores, poetas, pintores, escultores, cartunistas, enfim, buscam no mais profundo labirinto dos seus “eus” algum “dom perdido”.
Em ambos os casos, os nossos “gnomos sociais” são sonhadores, porém não conseguem viver de maneira alguma com a solidão. O feio convicto e solitário se sente um anômalo perante a sociedade. Resume o seu círculo de amizade a meia dúzia de outros anômalos. São adeptos incondicionais das sociedades fechadas, onde os princípios e as finalidades se mostram com mais afinidades.
Reza a lenda, que os feios não olham para o espelho com muita simpatia. Garanto-lhes que esta lenda não passa de uma lenda. O espelho, este objeto tão real aos nossos olhos, é vez ou outra consultado por esta classe. Procura-se a todo instante uma melhoria qualquer na feição, ou até mesmo na forma física. Sendo assim, o espelho é uma ferramenta indispensável aos olhos incansáveis destes esperançosos humanos. As lágrimas, estas delatoras incondicionais, estão sempre presentes nestes tristes momentos.
Quando uma mulher, qualquer mulher, me olha, mesmo se for por uma fração infinitesimal de segundo, fico a imaginar: será que ela me olha apenas por eu estar no caminho de alguém a quem o seu olhar busca? Será que ela me olha apenas por desprezo? Ou será o seu olhar dirigido por instintos ou sentidos desconhecidos? Talvez, nunca saberei a resposta desta cruel e desgastante situação. Então, aos feios, os livros.
Obs.: nunca, e em hipótese alguma, este desígnio é válido para os milionários.















Vento amigo

Quando o vento refresca o nosso corpo carente, sente-se a sensação de carícia proposital da natureza. Sabe-se a origem deste fenômeno, porém nunca saberemos a razão verdadeira do seu destino.
Nesse instante, o frescor invade o meu quarto, proporcionando-me momentos de puro êxtase.
Não concordo com a tese de que o vento leva consigo todos os nossos sofrimentos. Tenho plena convicção de que o seu objetivo para conosco é simplesmente ser este fiel companheiro, que nos conforta e nos alivia nos piores momentos. Também é parte de nossas alegrias. Enfim, é companheiro, e mais, não pede nada em troca.
Agradeço sensibilizado à natureza por me proporcionar este fenômeno magnífico, mesmo sabendo que através de suas rajadas muitos perderam a vida, e ou os seus bens materiais.
Sinceramente, não sei o por que resolvi escrever palavras tão singelas, graciosas, meigas e insinuantes a esta parte de nossa parte: a natureza. Não me preocupa, nem por um instante, tais fenômenos naturais. Danem-se!
















Posições delicadas

A força tarefa aliada (americanos e ingleses) se prepara para conquistar mais uma posição inimiga. Bombas teleguiadas. Armas bélicas e meios de comunicação de última geração. Imperialismo militar e econômico.
Como eu estaria se fosse um soldado das tropas aliadas? Pronto para atacar? A adrenalina controlada? Cegos, perante um inimigo sem face e sem local definido? Nacionalista? Implacável? Matador? Sensato? Aniquilador? Vingativo?
A defensiva talibã se prepara para entregar mais uma posição. Ontem, ajudados a defender o seu território. Hoje, relegados a terroristas.
Como eu estaria se fosse um guerrilheiro talibã? Acuado? Temeroso? Receoso? Ávido por combates ainda mais sanguinários? Defensivo? Atacante? Pálido? Faminto? Sedento? Pensativo? Indeciso? Suplicante? Crente? Vingativo? Voraz? Fiel?




















Parcial

Sinto que ultimamente o meu senso crítico em relação ao mundo está mais crítico que imparcial. Mesmo ausente de emitir opiniões e liderando um grupo solitário de silenciosos, minhas posições são claras. Todas as justificativas a mim endereçadas, não me convencem dos seus verdadeiros propósitos, aliás, são propósitos específicos e não me envergonho em confessar que sou ignorante em assuntos internacionais. Mesmo sendo ignorante, estas ações não me convencem de seus propósitos. Quem se defende, defende-se por ideais religiosos ou humanitários, sei lá. Quem ataca, ataca-os por ideais imperialistas ou humanitários, sei lá. As análises são sempre fundamentadas em observações e estudos primários. O cerne da questão é deixado de lado, pois não existe interesse de se conhecer a verdade de cada ideal.
Enquanto um ser humano morrer de desnutrição, e pior, por razões conhecidas e “desumanitárias” de toda a humanidade, não acreditarei em idealismo algum. A mim são todos imperialistas, mesmo aqueles estereotipados como humildes.


















Inexplicável

Em todos os tempos… Em todos os lugares, mesmo que este tempo seja tão remoto quanto o próprio tempo, e mesmo que estes lugares continuem ainda desconhecidos, a estupidez da vida é pensada e discutida por seres humanos que não se limitam a apenas viver por viver. Suas conclusões, tais quais outras tantas, nada acrescentam por não saberem de absolutamente nada, aliás, como todos nós: é a intransponibilidade dos labirintos da mente e do universo. Chamam a estes inexpressivos e ociosos seres, nos quais me incluo, de pensadores da humanidade. A preocupação com as explicações sobre a existência não tem fundamento, pois quanto mais se pensa nesta questão, talvez mais se afaste da realidade.
O universo é mágico e, tal qual o artista do inesperado, esconde os segredos de nossas visões, deixando-nos apenas com a imaginação e conseqüentemente, com os tais mistérios.
Nada mais obscuro e sem conseqüência que buscar explicações onde não existem explicações. Os pensadores pensam que pensam, sobretudo porque carregam nas suas pochetes, a interrogação. A verdade é a verdade de cada um, mesmo que tal verdade não passe de uma mentira coletiva.
Sem tempo e sem espaço definidos. Nem remoto, nem presente, nem futuro. Nem aqui, nem ali, nem acolá.
Bonecas nuas esparramadas pelo meio-fio, destituídas de quaisquer preconceitos mostram seus corpos nus, portanto, agraciadas pela natureza nua.











Meus pés...

Mais que um simples pé, meus pés funcionam como condutores não motorizados da minha vida. Nunca questionei o valor destes amáveis veículos. O deslocar sem ajuda é um processo importantíssimo nos dias atuais. Às vezes, meu joelho esquerdo e também o direito se pronunciam delicada e sensivelmente – são dores fortes e agudas – porém, esta sinalização me serve como aviso para transitar com menos intensidade, escolhendo os melhores roteiros e com mais critério.


























Habitantes nojentos

Cada vez mais me enojo de viver neste planeta sem escrúpulos. Uma epidemia de predadores se alastra por todas as camadas sociais, por todos os recintos e por todas as instituições.
Diante de todos os animais irracionais, desprezo a minha condição de ser humano. Nada mais sórdido do que fazer parte desta maldita espécie, nutrida de inveja, insensibilidade, incapacidade, atraso, imbecilidade e estupidez. Paro por aqui, pois não haveria tantos adjetivos pejorativos para classificar estes imbecis.
Seus sorrisos são falsos. Suas lágrimas são falsas. Tudo e todos são falsos. Apenas existem os interesses escusos e as circunstâncias convenientes.
Experimente por um dia ser manso, delicado, sensato, educado e cortês. Simplesmente, a resposta será de atropelos e desmandos, vindos de todos os lados. Não interessa aos humanos ter em sua companhia um humano pacífico.
Por tudo isso, e por mais aquilo, prefiro a companhia segura e prazerosa dos meus livros e dos meus discos. Durante as páginas lidas, reflito sobre as letras que ficaram pra trás. Revelações que se fizeram necessárias às organizações, que sem interesse protegem a natureza. Amores impossíveis aos olhos da sociedade, porém necessários para desmascará-la. Criaturas geradas pelo império da ganância. Sons que refletem imagens. Sons inspirados na morte. Livros e discos, e nada mais.
Cada vez mais me enojo de viver neste planeta sem escrúpulos.











Amores para sempre

Não se esquece de um amor, ou seja, qualquer amor. Não seria possível apagar da memória, ou seja, qualquer memória, tantos momentos, nem aqueles onde os sorrisos foram testemunhas oculares de tamanha felicidade, ou seja, qualquer felicidade, e nem aquele onde a lágrima denunciou o sofrimento, ou seja, qualquer sofrimento.
Guardo comigo cada face; todos os gestos destas faces; as reconciliações com todas estas faces; as despedidas de todas estas faces; os encontros com todas estas faces; os desencontros com todas estas faces; os abraços de todas estas faces; os beijos de todas estas faces; as músicas que marcaram cada uma destas faces; os filmes que escreveram as páginas nas histórias de cada uma destas faces; os lugares onde estão gravados os passos de cada uma destas faces; os nomes de todas estas faces; as datas que fui premiado por estar na companhia de cada uma destas faces; os inícios dos relacionamentos com cada uma destas faces; os finais tristes e dramáticos com todas estas faces. Muitas e muitas trepadas com cada uma destas faces. Enfim, guardo absolutamente tudo, ou seja, tudo.
As comparações são também inevitáveis. Uma palavra mal colocada; um detalhe não percebido; um olhar mais afetuoso; uma atitude mais enérgica; uma decisão inadiável; uma roupa mais exótica e outra mais sensual; a mão que delicadamente tocou nas proximidades da vulva; o dedo que acariciou os seios; a apalpadela nos flancos das nádegas carnudas; o corte ou a tintura do cabelo; o andar mais ou menos cadenciado; os pratos preferidos; as cores favoritas; a música que toca no rádio; a marca do cigarro ou a bebida mais apreciada; o número do telefone; a marca do automóvel; o documentário sobre a cidade natal; o animal de estimação; o autor preferido. Exatamente tudo é motivo para comparações.
Não se esquece de um amor, ou seja, qualquer amor.






Olhar inoportuno

Quando os meus olhos procuram outros olhos – fato tão natural entre os animais racionais de sexos opostos, ou não –, estes olhos que receberam os meus olhares têm nos seus olhares uma conduta de insatisfação. Visivelmente são olhares de censura e reprovação. Meus olhares, até então contempladores, fogem imediatamente destes olhares, que por ora e para sempre me desprezam, chegando mesmo até a fazerem caretas de desprezo. Está claro que ao chegar em casa me dirijo sem pausas ao banheiro à procura dos espelhos. Olho atentamente àquela figura que se apresenta diante de mim e nada observo de anormal. Esta figura, embora caracterizada pela “triste figura”, não demonstra ser um anômalo ou qualquer espécie em estado de misericórdia. É um ser normal, normalíssimo (sic), e tão normal tanto quanto outros tantos que se apresentam por aí. Imagino que este ser de “figura triste” tem os mesmos problemas e as mesmas dúvidas de outros seres desprezados por olhares mais libidinosos.
Já não procuro mais por olhos femininos, pois conheço antecipadamente a resposta, e confesso, ela não me é agradável.
Às vezes, desconfio que sou obra de algum fenômeno sobrenatural, tamanha a indiferença que recebo dos olhares femininos. Não sei ao certo se sou invisível, creio que não.
Obs.: sei que não preciso dar maiores explicações do meu posicionamento sexual, porém, devido ao desprezo recebido pelos olhares femininos, alguém pode pensar que tenho tendências homossexuais. Não, sou heterossexual assumido.








Cambada...

Medo. Um estado deplorável, onde a adrenalina atinge níveis altíssimos, e mesmo assim, não existe reação.
Pânico. Fronteiras jamais ultrapassadas. Decisão sem resolução. Tremor sem ação.
Sou como animal machucado, encurralado, que luta pela sobrevivência em meio a tantos predadores famintos e vorazes. Sem enfrentar a realidade, como a realidade é, transpareço a fraqueza que meu ser demonstra ser. Não luto com as mesmas armas dos meus oponentes, aliás, não luto com arma alguma. Sou caçado, machucado e devorado em cada esquina sem ao menos combater. A ferida nunca cicatriza, muito pelo contrário, surgem mais e mais feridas… e mais e mais cicatrizes.
Miseráveis! Desgraçados! Canalhas! Estúpidos! Broncos! Patifes! Maléficos!...
Com esta pena condenarei à morte todos aqueles que se colocarem em minha frente como guerreiros sem escrúpulos. Vingarei cada indelicadeza com palavras e frases aniquiladoras. Jogarei à lama todos estes malfeitores. Resta-me a tinta e o papel. Atravessarei as cercas que me separam desta maldita carnificina.
Os assassinos e os bandidos não sofrerão espécie alguma de retaliação. São o que são. Diferentemente daqueles que se escondem atrás dos balcões, mascarando-se como trabalhadores escravizados. Não. Prefiro a sinceridade e a fidelidade dos infiéis, cretinos e desonestos, literalmente. Salve a sinceridade dos contraventores, literalmente.
Espalha-se a misericórdia, a piedade e o perdão. É necessária uma reavaliação destes conceitos mesquinhos, fracos, mentirosos e covardes. O que chamam de cordialidade, chamo de conveniência. O que chamam de amabilidade, chamo de interesses. O que chamam de cortesia, chamo de corrupção.
Miseráveis! Desgraçados! Canalhas! Estúpidos! Broncos! Patifes! Maléficos!...






Ausência...

Fugir de todas as situações onde a simples presença é necessária. Ausentar-se para recarregar as energias. Sumir para ser esquecido.






























Onde estão os meus discos?

Roubaram todos os meus discos. Apenas deixaram as suas respectivas capas, pois estas não acompanhavam os seus parceiros, sendo assim, ficaram livres destes gatunos e malfeitores. O que farei com tais encadernações?
A vida não se resume a certas músicas, mesmo que estas façam parte de uma história e acompanhem-nos por toda vida. É certo, pois, que estes malfeitores e gatunos me arrancaram parte dos sentimentos. Levaram consigo a agulha da acupuntura. Não quero nem pretendo com isso desfalecer-me, entregar-me a sofrimentos menores, e embora fosse atingido por um projétil inesperado e voraz, estou pronto para reiniciar outros projetos, mesmo sabendo que estes me custarão muito mais que aqueles, pois o “rapa” limpou com os vendedores de CDs piratas. Que venham as novas tarefas!






















Discos e capas...

Encontro-me num imenso desfiladeiro, onde os caminhos tortuosos se encontram danificados pelas últimas chuvas, que foram torrenciais, porém a cautela já se faz necessária e passos curtos e seguros me conduzirão ao final da trilha.
Não devo contar com mãos salvadoras, pois neste lugar não existe nem pés, nem mãos, apenas eu e o caminho. É uma espécie de marco zero, embora saiba que muitos quilômetros já foram percorridos, entretanto, é necessário esquecer, ou melhor, é necessário aprender com os passos dados em falso.
Não deixarei os discos separados de suas respectivas capas, ainda que roubem novamente todos os futuros exemplares, e então, não mais ficarão as lembranças contidas nas suas respectivas encadernações.
É melhor assim!





















Caneta impiedosa

Ultimamente, a minha caneta está mais severa e impiedosa que de costume, com todos os acontecimentos. Ela desabafa todas as mágoas, não se importando com isso, se machucará alguém com os seus rabiscos.





























Outros caminhos...

O martírio não é o único caminho a seguir. Outros roteiros ainda mais tempestuosos serão traçados.































Saúde em dia...

Os resultados dos exames clínicos demonstram que a minha saúde está satisfatória. A alimentação precária, o eterno mal estar e cansaço, o cigarro excessivo, o sono completamente descontrolado, por ora (aciono vorazmente o acelerador de minha morte e mesmo assim não morro) não estragam o meu sistema vegetativo.
Tais resultados não me iludem, sobretudo por continuar a me alimentar sem critérios nutritivos e sem a freqüência normalizada. Tais resultados não me iludem, sobretudo por levar uma vida despreocupada de sistemas, ou com um mínimo de organização. Tais resultados não me iludem, sobretudo pelo fato de cada dia fumar mais e mais cigarros, e pior, os mais baratos, que contém bem mais nicotina e alcatrão que os mais caros. Tais resultados não me iludem, sobretudo pela maneira como divido o meu dia: trinta e seis horas sem dormir e doze horas de sono – resolvi alterar a minha cronologia diária.
O que estará reservado para este corpo inescrupuloso?


















Madrugada fria

A madrugada fria transpira silêncio e inspira as estrelas a brilharem. Nem mesmo o vento lento e cortante interrompe a paz, que destituída de guerra, impera solenemente neste período.
Alguns gatos pretos circulam distraídos pelo telhado do prédio vizinho. Aparentemente, nenhuma gata preta está no cio. Não se houve suas passadas, talvez pelo cuidado que estes seres têm em não acordar seres mais nervosos. De onde se encontram e com os seus olhos investigativos me observam, sabedores de que também eu os observo. Não abuso de minha “condição superior” de humano e os deixo sossegados. Eles também não abusam de suas “condições inferiores” de irracionais e também me deixam em paz.
Os canários na gaiola estão agitados. Sentiram a presença de seus predadores naturais e se esforçam para continuarem presos, porém vivos.
Neste instante – não creio que os gatos pretos se interessem por estas minúsculas, porém apetitosas aves –, o faro e garras destes felinos domésticos tramam outras emboscadas mais sugestivas e saborosas, talvez algum roedor menos avisado, distraído com a sua prole que acabara de nascer. Prefiro observar estes predadores noturnos a outros predadores, estes humanos, que conspiram planos contra outras presas.
A madrugada alimenta os pensadores a buscarem respostas na infinita escuridão. Consigo, sem a ajuda de aparelho algum, decifrar ondas eletromagnéticas emitidas de outros mundos por seres preocupados com a comunicação universal. Não afirmo que estes chamados são emitidos por seres extraterrestres. Há a possibilidade destas ondas serem apenas ondas eletromagnéticas sem que sejam emitidas por quaisquer seres de outros mundos. Sei lá!
Decididamente, os gatos pretos desistiram dos canários. Estão todos em outros telhados. Agora, os canários dormem, embora sempre deixem um deles de sobreaviso. É necessário, pois os gatos são astutos e nunca estão desatentos, então, eis um canário amarelo de olhos bem abertos.
Sem cigarro… com fome… sem dinheiro. Eis-me aqui!


Blasfêmia

O conhecimento é o mais ímpio dos prazeres.
Nada justificaria tal blasfêmia, mesmo se a escrita viesse de um monge tibetano, ou de um antropólogo em busca do início das origens. Confesso que não justificarei o que acabo de escrever, mas é verdade.




























A lua cheia enche...

A lua cheia, cheia de nuvens pretas a interromper o seu brilho, que mesmo natural, ilumina o uivo do lobo das montanhas. Uivo que não ouço por não existir lobos neste planalto, embora encontre aqui e ali outros “lobos” a vagar em busca de presas fáceis.
Há mais mistérios nas luas cheias do que imagina a nossa vã filosofia. São mistérios relativos ao corpo, mas não somente a ele, mas também à alma, ou tudo aquilo a que chamamos de sentimento. Não quero perder tempo com assuntos místicos ou esotéricos. Faço muito de apreciar esta fase lunar. Deixarei a lua cheia para os lunáticos (sic).
A lua cheia enche o céu de mistérios...






















Dor de cabeça

Uma dor de cabeça insuportável assola a minha cabeça. Já utilizei todas as técnicas orientais que conheço, mesmo sabendo que são poucas as que conheço, claro, e ela teimosamente, não me dá o mínimo de sossego.
Com a ponta dos dedos indicadores das mãos flexiono todas as partes doloridas do meu crânio. Passo para a parte ocidental e engulo alguns analgésicos… e nada!
Estômago saciado. Não leio há dias. Poucos cigarros, e é óbvio, apenas por não tê-los. Sono (acreditem!) em dia.
Ao apagar a lâmpada do meu quarto e transformar o ambiente numa penumbra sem igual, atrevo-me a fechar os olhos e vejo uma infinidade de pontos luminosos. Cada um deles me indica a posição da dor, e são muitos pontos luminosos para uma infinita dor de cabeça. Acendo a lâmpada. Apago a lâmpada. Acendo a lâmpada…
Meus movimentos são lentos e cuidadosos. Nestes três dias que se passaram, sinto ser duas pessoas: aquela que está com dor de cabeça e aquela que a combate de todas as maneiras.
Quem eu gostaria de ser: a dor, o curandeiro? Não sei.
Concentro todas as energias nas pirâmides do Egito, nas estátuas da Ilha de Páscoa, nas escadarias dos Maias, nas… e nada.
Uma barata (lembram-se delas!) passeia pelo rodapé do meu quarto. Não é daquelas voadoras (ainda bem!). Cautelosamente, e sem o mínimo descuido, apanho o meu tênis e avanço decididamente para matá-la. Uau! Esmaguei-a!
Uma dor de cabeça assolava a minha cabeça.









Gramática existencial

Há momentos que faltam pronomes na língua-mãe. Eu não seria eu. Eu também não seria nós. É mais que isso. Seria uma mistura homogênea de todos eles. Uma visão oculta de todos nós.
A voz que ouço sem ouvir. A imagem que vejo sem ver. Perguntas não endereçadas a mim e a ninguém, e outras endereçadas a pronomes pessoais usuais. Não. Não são estes os pronomes pessoais a que me refiro. Existe algum vazio nas conjugações dos verbos regulares e regras infantis nos irregulares.
Sei que os meus argumentos são vagos e que estudiosos da língua-mãe estão me esquartejando, porém, sei que existem outros pronomes pessoais. O momento também é vago para tais argumentos.
Não ouço outras vozes. Não vejo outras imagens, embora saiba que existam todas por aí. E por ora, concretamente, fazem parte dos pronomes pessoais inexistentes.



















Infância

O que eu ouvi quando criança? O que eu vi quando criança?
Lembro-me de que as primeiras brigas me foram favoráveis. Eram dois meninos amedrontados, e eu, soberano das “artes marciais”, afugentava-os. O tempo passou e aqueles meninos amedrontados descobriram que as minhas “artes marciais” não passavam de golpes fajutos. Corri deles até os confins do mundo e creio que corro até hoje. A minha inteligência nunca fora maior que a realidade.
Lembro-me de que as minhas primeiras partidas de futebol me foram favoráveis. Eram muitos garotos despreparados, e eu, soberano no controle da bola, derrotei-os a todos. O tempo passou e aqueles garotos despreparados descobriram que o meu controle de bola não passava de toques maliciosos. Venceram-me em todas as outras partidas que realizamos. E creio, perco até hoje, mesmo sem jogar. A minha inteligência nunca fora maior que a realidade.
Eu era a minha própria sombra nas aulas de matemática. Os números e as expressões transitavam no meu labirinto, e o meu outro ser resolvia todas as questões, descobrindo todas as saídas destes labirintos. Restava à professora apenas as palavras cruzadas. E eu as devorava. A minha inteligência nunca fora maior que a realidade.
Comer o pão com bananada que minha irmã me levava no recreio das aulas era o único momento onde não existia a minha inteligência, e sim, apenas a gula. Que delícia!
É estranho: mesmo sendo o melhor aluno da escola, jamais me honraram com tal título.










Pensão (sic) da Dona Valéria

Dona Valéria é a proprietária do sobrado onde alugo um quarto, aliás, uma sala cortada ao meio por uma parede de pinho até o teto e transformada em dois quartos. Diz ela, e nisso confio, pois é uma mulher autêntica e clara, que aluga os cômodos com a única e exclusiva finalidade de aumentar a sua renda mensal. Mesmo acreditando no seu discurso monetário, e isso ela faz com exímio gabarito, desconfio que existam outros motivos, não tão radicais, para esta árdua e honrosa empreitada.
O imóvel é enorme e localizado num dos pontos centrais de Santana, motivo pelo qual a Prefeitura Municipal de São Paulo envia-lhe anualmente um carnê de Imposto Predial com prestações mensais altíssimas. Talvez esteja aí o principal motivo dela alugar tais cômodos, ou seja, ela necessita aumentar a sua receita em Reais e encarar a realidade de pagar os tributos imobiliários, que também são cobrados em Reais.
Deixando os orçamentos domiciliares de lado e buscando outros motivos que levam esta prestativa senhora a alugar o seu imóvel, chego à seguinte conclusão: a casa é grandíssima e ela jamais viveria apenas com seu marido neste casarão. Contudo, seria para ela um prédio ideal para se brincar de esconde-esconde.
Mesmo com os seus sessenta anos, a sua diabete nervosa, o seu colesterol alterado, a sua pneumonia dupla já curada, porém sempre citada com lamentações múltiplas, esta mulher é um exemplo vivo de mulher: dinâmica, tagarela, versátil, ágil, decidida, amiga, vencedora, guerreira, enfim, jamais eu imaginaria esta virtuosa morando sozinha, e, principalmente numa residência tão ampla e confortável como esta. Não divagarei nos motivos e neste caso prefiro os fatos, que são mais plausíveis.
Minha sala, aliás, quarto-metade, é o primeiro dos quatro quartos do sobrado. Faz frente com a rua, que por sua vez é extremamente movimentada. O movimento dos automóveis, ônibus e até de caminhões transforma-se num barulho insuportável e infernal. As minhas preocupações literárias são deixadas de lado, assim sendo, retorno ao mundo barulhento dos normais. Noto com os meus ouvidos quase que desligados que a manifestação destes veículos é extremamente frenética.
Quando o sol se apresenta pela manhã, e estranhamente esta revolução é diária, ele, o sol, logicamente, não me pergunta se desejo ou não a sua imperiosa e despótica presença. Como um raio que desce nuvem abaixo, ele invade a minha janela de vidro, iluminando com seus raios fulminantes todo o meu quarto-metade. Uma cortina de renda branca é a única barreira para proteger meu quarto-metade contra a invasão dos raios fulminantes do sol. E francamente, esta cortina precisa ser lavada, pois é visível o pó nela contida. Seria lógica a captação desta energia solar matutina, todavia, eu me escondo destes raios invasores.
Tenho o hábito de estar sempre vestido no meu quarto-metade, mesmo que este vestuário se resuma a uma simples e confortável bermuda. É necessário estar de sobreaviso porque costumo abrir a única porta do meu quarto-metade para a brisa mansa adentrá-lo. O cômodo até então viciado com a fumaça e cinza de cigarro, além é claro de outros gases que não mencionarei por simples respeito ao leitor, se renova, dando novos ares de vida a uma vida que se presume morta, ou quase viva. Sou viciado em ar viciado, mesmo assim, é interessante e higiênica esta renovação.
Procuro não descrever com mais detalhes a minha moradia, que a primeira vista parece simples, para que os leitores mais opulentos não se exaltem e delirem por estarem numa situação residencial e econômica bem melhor do que a minha. Também, não a descrevo para que os leitores mais humildes não se humilhem ainda mais. Na realidade, não sei o por que deveria descrevê-lo. Poderia simplesmente ignorá-lo, fato este que não acrescentaria, nem diminuiria em absolutamente nada o texto. Esforço-me ao máximo para não transparecer a minha banalidade, e mesmo com esta persistência, o que mais transparece na minha personalidade literária é exatamente este compromisso com a banalidade. É desnecessário buscar argumentos medíocres, afinal, sou banal nesta descrição. Porém, lhes confesso: não é isso o que quero escrever e mesmo assim, escrevo.
Embora contra a minha vontade pessoal, e, amarrado à minha vontade literária, continuo a derramar neste papel, um mar de tintas sem sentido e, entretanto, sigo em frente, portanto, não lhes dou a mínima.
Outros cômodos – maiores ou menores, mais ou menos iluminados, mais ou menos arejados, mais ou menos embolorados, mais ou menos mobiliados, pintados a látex ou a caiação, com mais ou menos baratas, mais próximos ou mais distantes dos banheiros –, servem também como quartos de hóspedes. Seria inútil, ou tão inútil quanto, descrever cada um destes pitorescos aposentos, mais por serem originais do que pictóricos. Alguns dos seus locatários, e aí considero quase todos, não os conheço. De outros, mais ou menos familiarizados, sei apenas os nomes. Dois destes ilustres pensionistas (quando a Dona Valéria ler este parágrafo ficará “puta da vida”, pois odeia que chamem seu sobrado de pensão) têm histórias excêntricas e mais vulgares que a maioria dos seres humanos.
O senhor Ricardo, paranaense-brasileiro de um pouco mais que a meia idade, mora no melhor de todos os quartos da pensão (sic). Divide este quarto – separado ao meio por uma divisória de madeira, que para a sua infelicidade não chega até o teto – com a sua jovem e prestativa esposa – ele me confidenciou que não sabe quantas vezes se juntou a uma mulher –, e para o seu incômodo, o cômodo também é ocupado por seu pai desafeto, um senhor paranaense-brasileiro de oitenta e quatro anos, mas que na realidade aparenta apenas setenta e três. Poucas ou quase nenhuma foram as suas confidências a respeito de sua atual esposa, a qual chama pelo singelo e meigo apelido: ”Baixinha”. Certo dia, quando jogávamos conversa fora, me disse muito rapidamente que ela é maranhense-brasileira, e tem uma irmã que reside na Itália. Na última semana, ela ganhou um automóvel quase zero na rifa, que segundo ele, fora comprada com o seu dinheiro, dez reais, daí a justificativa do bem ser dividido exatamente pela metade. Assim que surgiu o primeiro interessado venderam o automóvel, e segundo soube, por um preço bem acima do mercado. Fica a interrogação: será que o valor fora dividido exatamente pela metade como combinaram antecipadamente? Isso lá são outras histórias.
O que me importa, ou não, é que resta a este antigo vendedor de Computadores Brasileiros o sonho de se mudar para Boa Vista. Nos seus planos de mudança levará consigo a sua “Baixinha”, porém, deixa claro que não levará o pai desafeto. Este passará o resto de sua vida num asilo, previamente visitado pelo senhor Ricardo, em Campos do Jordão.
O sonho e a realidade deste paranaense-brasileiro estão tão próximos como próximos estão o seu amor e o seu ódio, aliás, desconheço o seu amor e apenas conheço o seu sonho e parte da realidade, tão real quando aparece com diversas sacolas de plástico repletas de ofertas compradas nos mais distantes supermercados. Nestas empreitadas, onde a direção e a distância não importam, pois são encontradas nos folhetos publicitários, a sua fiel escudeira “Baixinha” o acompanha lado a lado e sacola a sacola. O suor e a fadiga traduzem-se em economia doméstica e o prazer de vencer os preços. Muitas vezes ouvi o senhor Ricardo dizer que não precisava dos produtos comprados, que o sabor da vitória era mais especial que as sobras, que invariavelmente sobrariam.
Desde criança ouviu que eram cinco as entidades: Cegonha, Bicho-Papão, Coelho da Páscoa, Papai Noel e Deus.
Aos poucos, descobriu que a barriga da mulher armazenava os guris com mais afeto e mais cuidado. Que as cegonhas, essas realmente com letra minúscula, não entendiam os sinais dos humanos. Esta foi a sua primeira e talvez a mais importante descoberta.
Durante este mesmo período de aprendizado do que é a vida real, afastou qualquer possibilidade da existência do nefasto e vil Bicho-Papão. Viu com os seus olhos bem abertos, que este ente criado maldosamente pelos adultos para assustar as pobres e ricas e inocentes criancinhas estava apenas nas mentes poluídas destes maldosos, vingativos e desqualificados adultos. Esta foi a sua segunda descoberta. Importante para determinar a sua ausência completa de medo de seres inexistentes, ou até mesmo invisíveis.
Os ovos de páscoa eram confeccionados de chocolate, e mais, também aprendeu com a sua volúpia em conhecer, que os coelhos jamais foram ovíparos. Os armazéns ficavam repletos destas guloseimas. Eram oferecidos aos clientes em diferentes formatos e em diferentes tamanhos. Nem mesmo o maior de todos os dinossauros conseguiria botar tal ovo. Esta terceira descoberta ensinou-lhe que os comerciantes inventaram um coelho que botava ovos, e pior, a gema e a clara eram de chocolate.
A tradição natalina não poderia faltar no seu lar, já que os seus pais eram cristãos católicos. Um dos seus tios apareceu cautelosa e sorrateiramente na sala de jantar de sua casa vestido com a roupa vermelha e branca do “bom velhinho”. O menino Ricardo procurou desesperadamente pelo alce e pelo trenó, e nada. Após estas primeiras decepções, suspeitou que se tratava de um larápio travestido de Papai Noel. A confirmação de que era seu tio veio quando reconheceu aquela voz fanhosa e gaga. A sua surpresa foi menor que a sua desilusão. Descobriu que existia em todos os lares cristãos católicos a figura carismática deste “bom velhinho”. E mais, que havia um Papai Noel diferente para cada casa.
Descobriu, aguçado pela sua espontânea curiosidade, que estas quatro entidades nunca existiram realmente.
Então, passou a perguntar a si e a outros sobre a existência da quinta entidade, Deus. Bradou pela sua aparição e nada deste Deus aparecer. Gritou e fez silêncio para escutar a voz de Deus, e não escutou nem um sussurro da voz de Deus, apenas a sua própria voz, que se encontrava rouca devido a tantos gritos. Mais tarde entendeu que todas estas entidades foram criadas por nós. Não quis entender os motivos que os humanos tiveram para criar esta criatura, que fizemos ser o criador.
Hoje, desdenha qualquer das passagens bíblicas. Suspeita até dos fatos históricos que marcaram esta saga dos judeus. E se recusa terminantemente a acreditar nos atos divinos proferidos a simples humanos.
O senhor Ricardo orgulha-se de ser um dos poucos brasileiros a conceder-se o direito de não ter votado nas últimas cinco eleições. Paga a multa de três reais por não comparecer no dia da votação. É totalmente avesso à política, embora fique evidente que é um cidadão politizado. Renega-se a acreditar em qualquer político.
Tem aversão a seu pai, e, apenas sabe que quatro dos seus cinco irmãos estão enterrados em algum cemitério.
Neste instante, o leitor mais atento perguntaria: por que gastar tinta, papel, diagramação, fotolito, chapa, impressão com um ser tão irrelevante? Este, que com esta caneta esferográfica escreve e descreve, lhes responde: a mim, é singular um ser humano sonhar com a sua casa em Boa Vista. Por isso, e nada mais que isso, este paranaense-brasileiro mereceu estas linhas.
Valério mora próximo ao banheiro, sendo assim, seu quarto é um mofo escandaloso. As paredes são emboloradas, tão emboloradas quanto o hálito matinal deste sofrido rapaz. Pela manhã é o primeiro a entrar no banheiro. Quando sai, ainda escuro, até parece que irá a uma reunião de executivos. Sempre muito bem alinhado corre ao encontro da filha Camila para levá-la à escola.
A vida tenta, insistentemente, vencer Valério, mas Valério, desgraçadamente, vence a vida. A vida, esta cruel e nefasta personagem, empurra-o pinguela abaixo, e ele “despinguela”, não encontrando o tronco salvador, mas encontra outra vida, aliás, nem sabe realmente qual, mas a encontra.
O seu sonho: se aposentar por invalidez. Não é inválido, e sim, inviabiliza a viabilidade de sua vida. Ou viabiliza a inviabilidade de sua morte.
Seu olhar verde, o seu ombro esquerdo caído e as suas palavras quietas são tão tristes quanto o seu estado de embriaguez diária.
Seu coração e os seus gestos são dignos de um homem honrado, que desonra a vida ao ser manipulado por ela.
Ele não é um ser que desafia a morte. Não. Ele desafia a vida continuando a viver. Transgride todas as leis naturais e continua a jornada do dia-a-dia. Seu quotidiano é sempre o mesmo, e nunca é o mesmo desafio, apenas muda o bar.
Novamente, e com toda razão, o leitor perguntaria: por que gastar tinta, papel, diagramação, fotolito, impressão com um ser tão inexpressivo? E novamente, porém diferentemente, este, que por ora escreve com uma caneta tinteiro, pois a tinta da esferográfica acabou, explica-lhes o motivo: a vida leva este pobre homem à morte, e a morte o rejeita. A rejeição da morte traduz-se em vida, e esta, maléfica e vingativa, carrega sorrateiramente este pobre homem novamente à morte. Resta, então saber, até quando? Quem vencerá? Será a vida ou será a morte?














Barulho necessário

Meu sono se acostumou com o barulho. Basta o silêncio invadir o cérebro, e este, maquiavélico e perspicaz inunda o corpo com descargas elétricas compulsivas. O corpo reage imediatamente com uma tempestade de pensamentos sem nexo.
E não é qualquer barulho que o satisfaz. Meu sono está seletivo e escolhe “a dedo” os ruídos preferidos: veículos, muitos veículos. Aviões, muitos aviões. Raios, muitos raios. Apenas durmo com o barulho silencioso da manhã.

























Filhos sem...

Filhos sem pai e sem chão. Filhos sem mãe e sem céu. Não são órfãos. Apenas pais sem chão e mães sem céu. Não são bastardos, nem filhos da puta, apenas filhos sem chão e sem céu. Filhos jogados ao léu.
Óvulos e espermatozóides. Filhos imunes a qualquer espécie de carinho. Filhos de filhos que tiveram pai e mãe. Filhos de filhos que nunca souberam a fisionomia de seus pais e de suas mães. Filhos de retratos. Filhos de registros em cartório.
Filhos adotados e “desadotados”. Adocionismo de um pai pária. Filhos de uma mãe que pariu e chorou, mas sumiu. Filhos sem irmãos. Filhos com as mãos e as certidões algemadas. Filhos das cestas de vime. Filhos de rio abaixo e filhos afogados.
Filhos da pátria. Filhos dos padres e das madres. Filhos do descuido. Filhos da falta de qualidade do Controle de Qualidade. Filhos da pressa. Filhos do engano. Filhos da ganância. Filhos da violência.
Filhos da barriga e do escroto.


















Gostaria de escrever como...

Gostaria de escrever como se fosse o regente de uma orquestra sinfônica de palavras. Respeitaria cada letra do instrumento e cada frase do músico nas suas devidas participações. Utilizaria a simplicidade complexa da escala musical poética. Sorriria para cada erro e transformá-los-iam em entradas mágicas para novos compassos épicos.
Gostaria de escrever como se fosse um rapsodo. Apoderar-me-ia de todas as cantigas populares, de todos os versos de cordel, das trovas dos amores impossíveis e adaptá-los-iam numa epopéia infinita.
Gostaria de escrever como se fosse um extraterrestre. Observaria cada comportamento humano: o espanto macabro dos medrosos; a suspeita audaciosa dos heróis de guerra; a elegância produzida dos homens-pavões; a insatisfação chorosa da namorada rejeitada; o sucesso sofredor dos grandes inventores; o choro verdadeiro das carpideiras nos funerais políticos; a briga engraçada entre senhoras de idade avançada por um produto em oferta; o cozinheiro francês de um famoso restaurante francês enfiar o dedo indicador da mão direita, talvez por ser destro, no nariz; a oração coletiva de um povo catequizado, porém sem fé; o crime perfeito de um rei de pé feito; o fracasso masculino inesperado numa relação homossexual; o grito rouco de independência de uma tribo africana escravizada; a passeata de trabalhadores exigindo o aumento nas horas de trabalho.
Gostaria de escrever como se fosse...











Tristezas...

Tenho comigo que todo poeta é triste. Ao menos aqueles verdadeiramente felizes. O sol é triste quando nuvens de fumaça formam sombra na terra. A lua é triste durante a sua eclipse total. O céu é triste quando visto como uma abóbada celeste. O oceano é triste quando lhe chamam de mar. As pedras são naturalmente tristes. As árvores velhas são tristes quando relembram o passado. A flor é triste quando murcha. O cárcere é triste ao abrigar presidiários. A manhã é triste quando nunca chega. A fogueira é triste quando se apaga. A água é triste quando seca.
A tristeza é triste quando na face desta tristeza existe felicidade.























Diversas chuvas...

Pode-se ver, ouvir, sentir os pingos da chuva por diversos ângulos. Mesmo quando o meu humor está aguçado, estas visões, sons e sentimentos nunca expressam felicidade, embora lhes confesse que durante este fenômeno natural, me sinto feliz.
A chuva oblíqua é fascinante. Seus pingos formam um desenho futurista com o artista vento movimentando aleatoriamente as suas formas. Há hidrostática sempre que estes movimentos mudam os seus ângulos.
Mesmo parecendo enfadonho e repetitivo, escreverei a palavra fascinante diversas vezes.
A chuva de ângulo reto também é fascinante. Parece que não existe ar, que naquele momento existe apenas a força gravitacional da terra. Não vejo a chuva de ângulo reto como uma obra de arte. Nela, é mais fácil entender o fenômeno natural da chuva.
As tempestades me fascinam, principalmente aquelas acompanhadas de raios, embora confesse um certo medo. É fascinante quando um raio, inesperadamente, sai como um raio das nuvens escuras, e também como um raio desce até encontrar o seu destino. Por vezes até atinge um pára-raios. É fascinante quando muitos raios, estes mais fininhos, se embaraçam desordenadamente no céu. Parece até uma teia de aranha tecida por uma aranha embriagada.
Não sou fascinado pelos trovões. Os sons graves emitidos não têm criatividade, parecendo até uma ópera de uma nota só. Os sons agudos emitidos, também não têm criatividade, embora não se pareçam com uma ópera de uma nota só.
Há um aumento considerável dos decibéis em todos os ruídos produzidos por corpos que cruzam o caminho da chuva. Ouve-se de longe os passos de um menino calçado.
Mesmo sabendo de todos os benefícios, embora aconteçam alguns malefícios, a chuva sempre me reserva um estado de melancolia. Uma tristeza feliz invade todo o meu ser, e até dormir eu durmo, mesmo não querendo dormir, e mesmo dormindo, sonho com a chuva.
“A chuva refresca a alma”. Ela retira do fundo do baú todo o passado. Lembranças esquecidas pela seca chovem no despertar da memória. Cenas marcantes, ou mesmo as cenas inexpressivas saem empoeiradas deste baú, sacodem a poeira e mostram-se nuas à minha realidade.
Durante a chuva, não ouso espantar os velhos fantasmas que aparecem do nada. São fantasmas camaradas e sofrem com a perseguição da seca.
Às vezes, imagino que os pingos da chuva são como um cipó. Tento, inutilmente, agarrar esta planta trepadeira e escalar a atmosfera até apanhar a lua.
Tenho apreço pelas chuvas, mesmo aquelas que me pegam despreparado.



























Trinta e seis graus e meio...

Tenho horror aos remédios alopáticos, como também tenho horror aos alopatas. Este tratamento parece levar monstros para dentro do meu corpo e a visão é assustadora: monstros ferozes estraçalhando monstros dóceis, ou vice-versa.
Não acredito nos remédios homeopáticos, como também não acredito nos homeopatas. Este tratamento parece levar milhares de gnomos para dentro do meu corpo e a visão é engraçadíssima: meu corpo servindo de salão de festa para estas entidades.
Tenho ojeriza aos exames clínicos, como também tenho ojeriza a enfermeiros. Chego até a esquecer o branco da paz quando me lembro da doença, principalmente quando esta doença está sitiando o meu corpo.
Ouve-se por aí que a morte é fria, e talvez por este motivo é que os hospitais são frios: lembram morte. Prefiro meus trinta e seis graus e meio de temperatura… assim é mais quente.



















O chão

O motivo legítimo da vida dos terráqueos no planeta terra está no chão. O chão é sempre o chão. O que está abaixo do chão é sub-chão.
Sou um ser vivo desajeitado e esquisito, porém sei exatamente valorizar o que tem valor, e, o valor do chão é inestimável.
Caminho com meus passos lentos, atentos e descompassados e, creio que esta é a melhor maneira de se caminhar, pois assim posso observar mais atentamente as maravilhas contidas no chão, e também, atentar aos desmandos da “incivilidade”, aliás, deixo a incivilizabilidade para o estado e contemplo agraciado cada centímetro quadrado do chão. Ao olhar este mesmo chão e perceber que pés menos atentos transitaram por ele, reavalio os efeitos drásticos e impiedosos que a ignorância e a falta de educação causam.
Erguer a cabeça para apreciar os transeuntes e outros obstáculos é uma heresia imperdoável contra o deus-chão. Olhando para o chão, olho a semente de todos os seres vivos.
Não consigo imaginar o planeta terra ou qualquer outro planeta sem chão. Iria apenas flutuar ou voar, sem nunca pisar num chão.
O chão é o alimento, a moradia, o caminho, o equilíbrio, a saúde, o trabalho, o lazer, o prazer, a educação, a arte, enfim, é a própria vida.














O autor cria um personagem e este cria um novo autor

Às vezes, a solidão espontânea se confunde com os sonhos de olhos abertos, e estes têm as mesmas características da depressão. Aparentemente são estados diferentes, embora se correlacionem com fantástica precisão.
Sonho, sobretudo acordado, fantasias acompanhadas de segredos da realidade e, tais devaneios conscientes embarcam este ser quixotesco na mais feliz das batalhas, ou seja, a solidão sapiente. É invejável a afinidade que tais estados psíquicos atingem, ainda que eu pareça estar num estado deplorável.
Quando estou no estado consciente da minha depressão, deixo que um mar de sofrimento inunde todo o meu ser, entretanto, deliro prazerosamente com tais delírios. A tragédia traz a paz e a reflexão.
As tarefas a serem executadas são cobradas freqüentemente, porém sou solícito à minha eterna paciência. As resoluções que esperem os desfechos.
O sucesso nas empreitadas nunca é visto como sinal positivo. Com ele, não há mais questionamentos, e sim, a acomodação. A escalada frenética e consciente é interrompida. E sei que nunca existirá a etapa final. Para existir um ciclo contínuo é necessário que haja dúvidas e, de preferência que sejam eternas. O sucesso, como ele é visto, torna-se uma busca e objetivo grotesco, primitivo, sem o menor fundamento, acomodativo e obsoleto.
O convívio pacífico com a depressão, sem que passe por controles de laboratórios farmacêuticos representa um avanço considerável no estudo das “doenças mentais”.
Andar com equipamentos apropriados ao suicídio e até mesmo zombar de suas utilidades pode parecer aos olhos mais críticos como sandice, mas o “deprimido consciente” é um símbolo de controle total da situação. Aos representantes credenciados e também aos fiéis religiosos estas atitudes parecem um desafio aos mandamentos do Todo-Poderoso, mas confesso-lhes que não é. A tradução apropriada para tais gestos estaria no respeito que este ser tem pela sua vida.
Atingir diversos fundos de poços e buscar outros fundos e outros poços, aí está a realidade destes desafios. Conhecer todos os fundos e conhecer todos os poços. E se isso não for possível, ao menos gostariam de conhecer parte deles.
Não pretendo com isso justificar o que para todos representa doença. Não quero produzir uma revolução contra os desenvolvimentos científicos. A ciência é a procura. A vida é a pergunta.
Liberdade plena

A minha liberdade nunca terminará, mesmo que me aprisionem num calabouço e me torturem até a morte. E mesmo torturado e morto é minha a liberdade de escolher.





























Complexidade

Se a vida é tão simples como apregoam os otimistas, também é simples pensar que se assim fosse, todos já estaríamos mortos ou não vivos. Simplifique a sua vida e o sucesso virá. Com ele, virá a eterna insatisfação e assim por diante.
Como posso encarar as orações de chuva: simplicidade, inocência ou pura mediocridade?



























Natal

É nojento o espírito natalino. Amigos invisíveis, que continuarão invisíveis ou até mesmo grandes assassínios de sorrisos inocentes.
Promoções de produtos encalhados nas prateleiras. Presentes para consertar defeitos “inconsertáveis”.
Tão irritante e mesquinho quanto a comercialização da fé são as promessas absurdas que fatalmente nunca se cumprirão.
Se eu fosse Deus e tivesse todos os poderes, que afirmam que Ele tem, amordaçaria e confinaria a sete chaves estes seres que vivem da pureza ignorante deste povo ignorante.
Arranjos natalinos. Árvores natalinas. Animais natalinos. Guloseimas natalinas. Indulto natalino. Canções natalinas. Orações natalinas. Entidade natalina. Deus natalino.




















Apetite sexual

Estas suas pernas tão bem torneadas e com músculos minuciosamente exercitados fazem destes meus olhos libidinosos, um olhar só. Estas pernas bronzeadas, fruto da genética de sua raça, dão um ar sensual aos meus anseios. Posso conter as minhas atitudes levianas, porém jamais conterei os meus desejos. O seu gingado mostra a sua sensualidade e não me canso de apreciar este seu andar matreiro e por demais malicioso.
Esta sua boca com lábios carnudos, apetitosos e desejosos, que condena ao prazer todo o seu estado de espírito, parece que me chama aos seus encantos, revestidos de sedução. A cada gesto ou a cada palavra, intencionalmente proferidas, sinto o doce e suave contato da sua língua com o meu pênis ereto, que penetra misericordioso no seu céu e macula o meu inferno, pois a fantasia das nossas atividades é comum somente a mim, ao menos é isso que sei.
A sua bunda, agraciada com a quantidade ideal de carne e de curvas, chama a minha atenção, não só pela beleza concentrada num só ponto, mas também pela leveza como conduz o seu gracioso andar. Minha imaginação apalpa estas nádegas tão maravilhosas, que os vermes não haverão de comer, e sim, contemplá-las.
Todo o seu corpo é um apetite sexual sem fim. Desdobro a minha mente, forçando-a exaustivamente a não pensar neste monumento sensual, e confesso, não consigo tal sucesso e a sua sedução se incorpora ao meu corpo vadio.













Paranóia

Não existe cronologia nestes textos, e sim, apenas aborrecimentos críticos, ou mesmo, fantasias que marcam uma paranóia eternamente presente.






























Ignorância

A ignorância, esta voluntária obreira dos religiosos e poderosos, se acomoda ao meu lado como se fosse a luz que veio de um universo desconhecido. Armazeno na minha memória, como que acorrentado e destituído dos meus reais valores, apenas a fração de segundo que passou. Conclamo, talvez inutilmente, a todos os deuses, se é que existe algum de plantão que me ouça, a restituírem o meu inexpressivo, porém, vívido passado. Tais orações e meditações não surtem o efeito desejado, talvez até pela cólera inofensiva que toma conta do meu ser inofensivo.
Não suporto o cárcere sem a busca de conhecimento. Não acredito que este confinamento seja obra de qualquer deus, pois a este deus caberia o título de déspota e nada seria tão humilhante quanto esta acusação de tirania.
Se for para ser ignorante, que não se acanhem os julgadores: trancafiem este ser ávido por conhecimento no mais incomunicável dos presídios. Tirem dele todo o objeto de desejo que possa orientá-lo a ter qualquer ensinamento.
Eu não quero a ignorância. Não seriam os ignorantes os primeiros habitantes de um suposto paraíso? Também, a suposta alma seria ignorante?
Concedo-me o direito e o prazer do conhecimento...















Há algo de podre...

Pessoalmente, nunca vi nem ouvi um fantasma, gnomo ou extraterrestre.
Combato o meu temor com meu próprio medo. Sei que sou o meu herói nas minhas mais puras covardias, mas mesmo assim, prefiro usar o medo como arma de defesa.
Somos parte da natureza, então, sei que haverá transformação.
Há algo de podre no reino universal!...


























Não ao suicídio!

O que me aborrece é saber que não morri agora. Jamais interromperia o meu ciclo vegetativo. Não sou corajoso o suficiente para fazê-lo nem acharia justa tal atitude, mesmo não entendendo a razão da minha vã existência.
Sou ausente, desertor, inadequado, inapto, incoerente, inacabado, incompreensível, indotado, insensato, desagradável, inanimado, inapresentável, enfim, sou este ser sem nada a apresentar.
A solidão e os sonhos garantem a minha existência. Não tenho intimidades com as leis humanas, tampouco me convenço das leis divinas. Não há padrão de sociedade que se adapte ao meu modo indescritível de vida.
Mancho o vento com pensamentos e palavras. Sofro com o dia e também com a noite. Não há ser vivo compatível com tal monstruosidade.
Não permito que humanos curiosos penetrem no meu mundo nefasto. E se por teimosia ou ousadia penetram, faço-os perceber que estão num terreno movediço, conseqüentemente, perigoso. E aos poucos se afastam, conscientes da periculosidade que os cercam.
Não acalanto esperança àqueles que desejam me velar como a um amigo. Saberei sempre me refugiar nesta circunstância.
O que me aborrece é saber que ainda não morri.














Meus fracassos...

Alguns dos meus fracassos não foram meus, porém são meus, pois caminham comigo por esta estrada intrafegável e sem destino.
Estou num longo corredor estreito, sem portas e sem iluminação. Não faço idéia como entrei e também não sei a razão pela qual entrei.
Na realidade, suponho que este corredor é longo e sem portas. Prefiro salientar que não existe iluminação, porém desde que adentrei neste recinto, não me lembro de ter aberto os olhos.
Faço menção aos fracassos, porém nunca entendi como fracasso a falta de sucesso, e, nem como sucesso a falta de fracasso.
É interessante observar um ser sem interesse e desinteressante. Ele é tratado como outro qualquer, e, não se felicita por isso, tampouco absorve os riscos de tal convivência.
Soletro as letras do meu nome e não descubro absolutamente nada. É fácil ser um ser humano. Basta explorar a incapacidade de outrem e usufruir os prazeres mundanos desta exploração.
Leio meu horóscopo e aí sim consigo gargalhar. Diz nas entrelinhas que meu espírito está aberto para situações amorosas sem risco. Meu espírito, ou seja lá qual for estas reações sentimentais, anda tão fechado neste corredor longo e estreito, sem portas e sem iluminação, que seria mais fácil me encontrar com um fantasma camarada que ter uma amante propensa a compartilhar deste meu mundo sem mundo. Não restaria outra alternativa a mim senão gargalhar.
Ao menos nesta noite abdiquei dos meus ofícios noturnos.










O crânio de meu pai...

Um dia tive o crânio de meu pai em minhas mãos. Não entendi a expressão dos seus olhos, que não eram olhos e sim cavidades melancólicas. Também não entendi uma só palavra que não saía de sua boca, cerrada pela dentadura que exprimia um não sei o quê.
Pude alisar os parcos cabelos, agora loiros, que teimavam em resistir ao tempo, que tivera tempo para renascer e não renascera, mas que continuavam charmosos e penteados.
Pedi ao céu ou ao inferno que me enviasse ao menos um gesto, que transferisse apenas um pensamento de seu crânio para o meu crânio. Nada!
Sua figura está morta nos meus pensamentos vadios e, sobretudo, seu crânio estava morto em minhas mãos vadias.
As caveiras poderiam ter vida. Seriam, ainda que sem o devido charme, o outro ciclo de nossa existência. Não existiria vaidade, ou existiria? Talvez um fêmur mais vistoso ou um crânio mais formoso. Não sei.
Anulo todas as possibilidades deste ciclo, afinal, não existiria o por quê.
Um dia tive o crânio de meu pai em minhas mãos...
















Entupimento

Minhas veias continuam entupidas e prestes a explodir. Os assuntos continuam os mesmos, apenas mudando as épocas e os personagens. Tudo continua entupido e preste a explodir a qualquer momento.
Alguém não é mais alguém e trocou a sua referência por ninguém. Os gatos continuam a vagar pelos telhados e, alguns até repousam nos estofados macios de residências luxuosas. Agora, existem rações que alimentam os felinos e com isso os ratos já não se preocupam tanto com este predador natural. Tudo continua entupido e preste a explodir a qualquer momento.
No mercado farmacêutico existem vasos dilatadores e também controladores de triglicérides, mas me recuso a curar os meus bons males.
Tudo continua entupido e preste a explodir. Já, ou a qualquer momento.





















Textos sem efeito
Minha mente, esta incurável egocêntrica, esboça textos para serem apreciados apenas por mim mesmo. Tento transcrevê-los numa linguagem acessível e compreensível, mas torna-se inútil esta transcrição, visto que, o conteúdo não traz interesse a ninguém.
Seriam necessárias várias mãos e igual número de canetas, pois o assunto nunca é o mesmo. Basta sair das profundezas de um sono que a minha mente inicia o processo de pensar, pensar e pensar. Não existe uma seqüência lógica nos pensamentos. Aquele que chega primeiro ocupa o lugar de destaque, entretanto, outros chegam e se acomodam em seus devidos lugares. Ordeno e organizo o quanto posso, porém a volubilidade é a marca registrada dos meus pensamentos.
Não há gramática capaz de acompanhar a rapidez e a diversidade, e confesso, nem mesmo eu suporto estas “qualidades” do meu pensamento. Normalmente, a minha cabeça pesa com tantas informações e tantos questionamentos.
Um imenso dicionário da língua portuguesa contendo aproximadamente duzentos mil verbetes e subverbetes se instalou sobre a minha escrivaninha para me ajudar. Quando sinto alguma dificuldade no vocabulário, recorro a este fantástico colaborador. Ele é pesado, porém é um grande amigo nos momentos mais difíceis. Algumas palavras contidas nestes dicionários são como fantasmas para incrédulos. Parecem não existir. Ficam guardadas em algumas páginas escondidas, e de repente, surgem para preencher um vazio em algum texto vazio, ou não.
Não posso me esquecer do cinzeiro em forma de frigideira, afinal, ele é o compartimento que mantém o meu quarto-metade limpo, visto que, fumo como um maluco.
Não sou escritor e nem mesmo estas linhas foram escritas pelas minhas mãos. Eu dito o tema e este autor transcreve as minhas alucinações.
Minha mente, esta incurável egocêntrica, esboça textos para serem apreciados apenas por mim mesmo.



Ideal

O princípio de toda revolução é o ideal. O próximo passo seria arregimentar o maior número possível de fiéis partidários. Porém, o sucesso desta jornada nunca virá sem os malditos recursos financeiros. Não há idealismo, fidelidade, heroísmo, estratégias que vençam a batalha final contra o desgraçado do dinheiro. Este lastimável recurso compra armamentos, bons soldados, estrategistas, informações, aliados e mais, muito mais, além de comprar a falsa fidelidade de alguns inimigos, comprados a “preços de banana”, em troca de informações e posições estratégicas.
Nem mesmo um ideal individual, que tantas vezes se confunde com objetivo, sobrevive incólume e por muito tempo sem dinheiro. É necessário “abrir mão” de tudo e de todos para levar adiante tal projeto. Por fim, se esbarra pelo caminho em algum obstáculo burocrático e todo ideal fica remendado como uma colcha de retalhos, sendo que esta possuí desenhos maravilhosos, enquanto o nosso ideal se torna uma colcha de retalhos de retalhos mal dispostos.
Gosto de ouvir músicas instrumentais tocadas por músicos profissionais. Tenho o grato privilégio de conhecer alguns destes músicos, que realmente levam a sério a profissão. São estudiosos, catalogadores, verdadeiros cientistas musicais que buscam através do conhecimento, dedicação nos ensaios, empirismo, e, sobretudo nos seus dons, a harmonia matemática dos graves e agudos.
Não tenho uma audição apurada e meus conhecimentos musicais não vão além das sete notas, todavia, distingo com certa dificuldade os bons dos maus instrumentistas, embora às vezes alguns deles consigam me enganar.
Como poderíamos revolucionar o mercado musical?
Sei perfeitamente que não há a mínima possibilidade de se obter sucesso neste jogo, mas confesso que seria interessante, educativo, apropriado e, sobretudo, fascinante mexer com a cabeça cultural de um povo massificado.
Músicos e mais músicos e mais músicos e mais músicos espalhados por todas as latitudes e longitudes existentes no planeta terra. Infiltrados em todas as praças públicas; em todos os cruzamentos das principais ruas e avenidas; nas estações de metrô e terminais de ônibus; em todos os galpões da periferia; nos portões de entrada dos palácios; nas ruelas das favelas; em frente de todas as casas noturnas e restaurantes; nas reuniões de cultos de todas as igrejas cristãs e não cristãs; nas praias; enfim, onde houvesse gente, nunca se importando com a classe sócio-econômica.
Fazer piquete em frente de todas as gravadoras, distribuidoras, redes de comunicação e governo, exigindo medidas urgentes para garantir a gravação, distribuição, veiculação da verdadeira música.
Nunca fui contra os trovadores, nem mesmo contra os vocalistas, porém o espaço musical é quase que exclusivamente deles. Aliás, nem mesmo a trova tem espaço.
O princípio de uma revolução é o ideal…

























Poeta desnecessário

Não existe mais a minha poesia. Todas já foram escritas, e mais, não existe espaço nem interesse pelas letras versadas.
Minha ocupação com os versos é deveras ilusão, pois jamais encontrarei um verso que não tenha passado pela pena de algum poeta. E mesmo que este verso seja apenas a minha verdade, não encontrará exclusividade alguma, pois a minha vida não passa de uma perfeita nulidade, e mais, tão igual a tantas outras.
Não existe mais a minha poesia. Os versos que já não existiam, foram trocados por uma prosa sem fundamento, e esta, mesmo caduca e inexpressiva se adaptou aos moldes da comunicação contemporânea. Minha ilusão com os versos é deveras teimosia e fracasso, pois jamais haverá espaço para as minhas epopéias ou para as minhas visões e alucinações sobre a vida. Meus poemas não têm a linguagem musical, e mesmo que tivessem, seriam cópias ou adaptações mal acabadas de outros poemas.
Não existe mais a minha poesia, nem o poeta, apenas existe um corpo humano com a sua fisiologia supostamente saudável, porém, eternamente em prantos, que vaga sem rumo e sem entender absolutamente nada da vida e dos versos. Estes foram devorados pela minha própria ignorância, que faminta e obstinada pelo fracasso do sucesso, se converteu em lixo literário, e hoje, dorme o sono dos infelizes e ineficazes numa caixa de papelão velha. Esta paciente embalagem ainda guarda em seu estômago alguns exemplares dos clássicos da literatura. Mistura o tudo com o nada e amarga o sofrimento silencioso dos escravos.
Não existe mais o poeta, tampouco jamais existiu. O que existiu, foi um pesadelo na vida daqueles que leram os meus versos. Talvez, nem sejam classificados como pesadelos, pois jamais alguém os esquece.
Meus versos desapareceram do público para prevenir que possíveis leitores desavisados e viciados na leitura lessem estas letras desordenadas e espalhadas pelo livro.
Esta descrição da alma humana não passa de quimera na minha pobre imaginação.
Não sei o que estou, e, tampouco sei o que sou.

Apenas ouço...

Esta solidão que ocupa o meu ser com nada, tem no silêncio do nada a minha companhia presente.
Posso isolar os ruídos que me interessam e transformá-los em melodias lunares. Posso afastar os ruídos que não me interessam e transformá-los em sucatas interplanetárias.
Ouço prazerosamente e fascinado o som dos átomos solares, mesmo que neste ocidente ainda seja noite.
Ouço magistralmente e encantado o som emancipado da deusa liberdade, que se libertou dos deuses opressores do universo e encontrou pousada no meu silêncio.
Ouço amigavelmente e enobrecido o som excluído da deusa fraternidade, que se afastou espontaneamente dos deuses tiranos de todas as galáxias e pousou como um pássaro livre na minha solidão.
Ouço voluntariamente e solidário o som inimaginável da deusa igualdade, que fugiu das correntes torturantes dos deuses poderosos do mundo conhecido e encontrou pousada no meu silêncio e pousou como um pássaro livre na minha solidão.
Ouço passos discretos, descompassados e conhecidos. Sinto-me aliviado e confortado por conhecê-los, pois assim é mais fácil direcioná-los. Para isso, basta encontrar um local secreto e inviolável. Também é necessário que seja seguro para mim. Ouço os passos ainda discretos, descompassados e conhecidos, porém, mais audíveis que outrora, e, sei que estão cada vez mais próximos. Não me parece grande nem pequena, e manca exaustivamente de uma das pernas. Talvez golpearam-na devido a alguma invasão surpresa. De repente, “pimba”! Joguei-a no lixo e fechei-o. Maldita barata!
Este ócio, que ocupa o meu ser solitário com nada, tem no nada o silêncio e ambos me acompanham.





Pensões

As pensões em São Paulo, embora diferentes em alguns aspectos ou em quase todos, são sempre iguais. Quase sempre os seus inquilinos são indivíduos solitários, bêbados, toxicomaníacos, prostitutas, homossexuais, separados por algum motivo das famílias, aposentados, abandonados, fugitivos, ex-presidiários, imigrantes (chilenos, bolivianos, peruanos, coreanos, chineses, alguns argentinos e membros de outros países), migrantes (quase toda a população nordestina, muitos mineiros, muitos sulistas, estes geralmente trabalhando como garçons ou churrasqueiros nas churrascarias de outros indivíduos do sul, e ainda membros de outros regiões brasileiras), negros excluídos (sic), músicos e alguns poetas. Todas as classes excluídas da sociedade, inclusive aquelas menos miseráveis.
Nesta minha jornada por estas residências hospitaleiras tive excelentes companheiros de quarto. Quase sempre calados e todos contagiados pela doença do sono. Bastavam algumas palavras mais ou menos interessantes e as suas pálpebras começavam a pesar e, num instante estavam dormindo. Dormiam o sono dos esgotados. Talvez pelo esforço descomunal de seus pesados trabalhos braçais. Talvez pelos transportes coletivos, que geralmente estão entupidos de ”gente”. Talvez pelas caminhadas sem fim. Talvez pelas intermináveis filas nos bancos e nas repartições públicas. Talvez pela cachaça de graça ou não, que anestesia os seus sofrimentos. Talvez pela maconha ou cocaína que entorpece as suas angústias. Talvez pelo antidepressivo ou qualquer outra droga desta droga de vida.
Suas histórias são marcadas por perdas irreparáveis. Um lugar no seu próprio sol. A sede de sua própria seca. A fome de seu próprio chão. A família de seu próprio incesto. Um horizonte perdido de sua própria cegueira.
Não gostaria de transcrever tais histórias, e confesso, não sei o verdadeiro motivo, porém, a história tem que ficar para a história.






Janaina

Janaina, baiana jambo de Feira de Santana, viu o seu primeiro e único filho, Alexandre de dois anos, cair numa fossa e sem que a sua vontade pudesse ajudá-lo, chorou ao vê-lo afogar-se naquela cavidade desumana cheia de bosta e mijo. Lastimou, blasfemou e logo após perdeu os sentidos. Recuperou-se e chorou novamente, não se alimentando por trinta e quatro infinitos dias. Alimentou-se, porém chora até hoje as lágrimas que não tem.
Cansou-se de olhar àquela escavação assassina e sem culpa. Cansou-se de esperar por aquele marido fugitivo e sem papel assinado no cartório. Cansou-se da vida repetitiva das orações repetitivas. Cansou-se das promessas encantadas prometidas pelos políticos coronéis da região. Cansou-se de ler o horóscopo nas revistas, sobretudo porque nunca soube a data de seu nascimento.
Colocou algumas roupas leves e insinuantes na mala de couro de bode e zarpou esperançosa para São Paulo.
Conhecia apenas os seus dotes sensuais e sua vontade de conseguir um emprego decente. Não tardou a encontrar dotes exploradores, que manifestaram interesse de explorar os seus dotes sensuais.
As facilidades da vida fácil levou-a a prostituir-se na quarta noite de frio e fome.















Anésio

Anésio, potiguar de Mossoró, estudou numa escola rural até o terceiro ano do ensino fundamental.
Naquela época com dezesseis anos, com pêlos espalhados pelo corpo e um tesão incontrolável por Carminha, uma irresistível pretinha de terras vizinhas. Tinha sonhos de conhecer outros fenômenos naturais diferentes em tudo das rajadas do vento norte e daquele sol escaldante, que teimava em queimar o seu calejado costado.
Através de fotos coloridas e de péssima resolução conheceu nas aulas de geografia as pseudo-riquezas de São Paulo. Encantou-se com o desenho sem formas que os edifícios espalhados formavam na fotografia. Fascinou-se com a fumaça preta que saía das chaminés das indústrias poluidoras, formando nuvens de figuras assustadoras no céu sem brilho. Não se assustou com estas imagens tão progressistas e com a grandiosidade mesquinha e acolhedora da metrópole.
Sonhou com andaimes, tijolos de barro, tijolos de cimento, concreto armado e sem alma, telha de amianto, telha de barro, reboco, madeira, ferro. Sonhou com a construção de uma basílica, que seria oficialmente inaugurada no dia seguinte após o término da construção com a primeira missa celebrada pelo Padre Cícero de São Paulo.
Olhou para os olhos e corpos cansados de seus pais. Fitou, um a um, os seus quinze magricelas irmãos e prometeu a si mesmo que aquela seria a última rajada de vento norte que a sua face prematuramente envelhecida pela vida iria respirar.
Colocou algumas roupas amassadas num saco de farinha de mandioca sem mandioca, e, fugiu amassado para São Paulo.
Conhecia a metrópole através de fotografias tiradas por um fotógrafo amador, que nada conhecia de foco. Não tardou a reconhecer alguns edifícios estampados na fotografia. Resfriou-se ao respirar o ar pesado daquelas nuvens pretas, que formavam desenhos de ogros, que sinalizavam para o novo habitante felicitação pela sua chegada.
Não demorou a encontrar amigos e estes tinham as suas fotos penduradas em diversos locais públicos. Estes modelos fotográficos levaram-no a conhecer a verdadeira São Paulo. Ele, sensibilizado e quase aos prantos, agradeceu a estes maravilhosos e atenciosos cicerones. Estava feliz e ansioso por estar na cidade, onde construiria a igreja que o alegrou nos sonhos.
Em Mossoró era um burro de carga.
Seu retrato colorido e sem sorriso ocupou os mesmos locais públicos de seus amigos. Cartazes proclamavam toda a população a encontrá-lo, pois a sua fama espalhou-se por toda a capital.
Feliz, talvez por ser uma personalidade tão disputada, honrou o seu emprego de transportador de cocaína. E esta, sempre prestativa a seus vassalos, entregou-o aos homicídios, e estes mal entendidos o conduziram ao cárcere.
Ficou como hóspede especial na “Casa de Detenção” por quinze anos. No pavilhão oito era cordialmente chamado de “Anésia” por seus amigos e protetores.
Tinha privilégios por ter os olhos verdes, que conseguiu através de alguma herança genética, talvez fruto de algum estupro em família num passado não tão remoto.
Tinha privilégios por ter o corpo bronzeado. Suas formas e medidas lembravam, e muito, algumas das mais famosas modelos. Estes aspectos agradavam a virilidade contida de alguns detentos mais poderosos.
Deixou a penitenciária cercado de boas recordações. Se quisesse, teria emprego fixo em diversas comunidades. Também poderia tentar a vida como travesti, mas não. Preferiu respirar o ar da liberdade (sic) por algum tempo.
Conseguiu um emprego como servente de obras numa construtora. Apenas não conseguiu se livrar do talco maldito.











Alfonso

Alfonso, boliviano de Santa Cruz de La Sierra, vivia com os seus pais num pequeno sítio de propriedade da família. O cultivo mal dava para a sobrevivência, todavia, com muito trabalho e sacrifício mantinham as suas vidas vivas e também as terras herdadas de muitas gerações.
Os traficantes de coca da região preocupados com a baixa produção dos últimos anos pressionavam todos os sitiantes vizinhos a cultivarem a planta maldita. Uns levados pelo medo, e outros, corrompidos pela ganância, se rendiam aos refinadores.
O pai de Alfonso era honesto, seguro de si e de uma educação irrepreensível. Estas qualidades foram herdadas de pais muito severos com a educação dos filhos. Devido a esta educação, desrespeitou as ordens dos poderosos e foi o único lavrador a não cultivar a planta.
Certa noite, doze homens encapuzados e fortemente armados chacinaram quase toda a família dos resistentes. Alfonso, que na época tinha dezenove anos, caiu ensangüentado dos pés à cabeça sob os corpos fulminados pelas balas insensíveis das metralhadoras importadas. Tornou-se assim o único sobrevivente desta chacina abafada por “gente grande” e jamais divulgada nos meios de comunicação.
O barulho infernal da explosão infernal das espoletas; o fogo em chamas cuspido pelas rajadas das metralhadoras avassaladoras; o ladrar impaciente, obsessivo e defensor dos cães de guarda, que nunca mais guardarão propriedades deste mundo; a gritaria prazerosa, ofensiva, desafinada dos bárbaros homicidas; os lastimáveis murmúrios moribundos, os muitos gemidos agonizantes e as aclamações por misericórdia das vítimas (animais racionais e alguns animais irracionais e domésticos); todos esses sons assustadores, intranqüilos e mais o desejo de viver um pouco mais, tombaram com o nosso sofrido, atormentado, porém, “sortudo” boliviano.
Algumas horas após o extermínio, ainda zonzo e desorientado pela barbárie, Alfonso livrou-se do incômodo peso que os corpos dos seus pais lhes exerciam e retirou aquela roupa manchada de sangue… sangue de toda sua família.
Banhou-se, observando atentamente aquele líquido vermelho que escorreria até o ralo do banheiro. Colocou alguns pertences numa sacola plástica, incluindo uma reprodução gráfica de Santo Expedito (o santo das causas urgentes). Apanhou o dinheiro que seu pai escondia num jarro, imitação de porcelana, e sumiu para o Brasil. Sem destino, porém ainda vivo.
Chegou no Terminal Rodoviário Tietê, de São Paulo, e o céu ainda estava claro, embora algumas nuvens anunciassem que a chuva não tardaria a chegar. A primeira impressão que teve da cidade não foi diferente daqueles que desembarcam pela primeira vez por esta parada.
Nota do autor: não me estenderei na narrativa das visões espantadas destes visitantes permanentes. E não darei qualquer justificativa por este ato.
Alfonso, o boliviano assustado com os últimos acontecimentos, se aproveitou mais uma vez de sua sorte e saiu à procura de emprego. Os ventos positivos estavam a seu favor e favoráveis às suas ambições, e logo encontrou alguém disposto a empregá-lo.
Paco, boliviano e recrutador clandestino de almas bolivianas clandestinas, conduziu-o a uma casa muito velha. Prendeu-o no porão.
Aprendeu em poucos dias a difícil arte de coser e costurava camisetas brancas durante os dias e durante as noites. Parava apenas para se alimentar – se é que alguém poderia chamar aquilo de alimento –, e para dormir por quatro magníficas e necessárias horas.
Sobreviveu mais uma vez. Desta vez escapou sem manchas de sangue de outra chacina. A chacina da dignidade humana.
Alfonso, ainda que não transparecesse totalmente, não saíra ileso destas torturas.
Seus sonhos são sempre acompanhados de gritos aterrorizantes emitidos por alucinações aterrorizantes, que aspira minuto a minuto a vingança. Este desejo parece incontrolável nos pesadelos noturnos e diurnos de Alfonso. Ainda se vingará daqueles malditos encapuzados, que ele bem sabe quem são.
Um dia ainda ditarei outras histórias para que este paciente autor as transcreva.
A vida destes ilustres marginais, excluídos pelos vícios e interesses da sociedade dita organizada, contará ao mundo, o quanto o mundo conta nas suas contas, com a escravidão destes pobres espíritos.

































Felicidade infeliz

A infelicidade que acompanha a minha felicidade, não é feliz o suficiente para mostrar um pouco de felicidade a este ser de felicidade infeliz.






























Posições trocadas

No natal cristão católico, os atores coadjuvantes e até mesmo os figurantes ocupam lugares que não lhes pertencem. Mostram-se como estrelas. E o verdadeiro astro se esconde no seu camarote, livrando-se de todos os aplausos mal dirigidos.




























Unhas...

As unhas da minha mão direita desviam momentaneamente a atenção do meu espírito. Às vezes, o ato de roê-las é puro reflexo, porém, sinto que esta interferência é mais do que um simples reflexo. As conseqüências desta ação roedora são férteis e imediatas.
Não utilizei este recurso natural por um longo período. Esqueci-me por completo destas companheiras fiéis. Apenas lembrava-me delas quando era necessário cortá-las.
Se eu dependesse das unhas das minhas mãos para tocar qualquer instrumento musical de cordas, isso jamais aconteceria.
Lembrei-me: meu controle sobre minhas atividades motoras é quase nulo. Daí a explicação para o insucesso com todos os instrumentos musicais.
As unhas das minhas mãos constituem a central do meu próprio domínio.




















Poliverso

As leis naturais – e as menciono, pois elas são produtos da natureza – conduzem todos os seres afins (animados), e aparentemente os não afins (inanimados), a lutarem infinitamente por suas aproximações. E mais, o comportamento humano é um a cada momento.
Somos seres conduzidos e obstinados pela idéia do único. A unicidade imposta nos obriga a pensar apenas numa cultura universal.
Reconhecemos o estado permanentemente mutante da natureza, e mesmo assim, ainda baseado nesta verossimilhança, demonstramos uma ingenuidade ou imaturidade em relação ao pensamento do único.
Os cientistas, estes incansáveis transformadores da natureza, mostram-nos a cada nova transformação – e jamais usarei a palavra invenção –, que é necessário nos adaptarmos a estas variações.
E entendemos que estas transformações ocorram apenas para que a nossa condição humana se evolua.
Será que jamais admitiremos o conceito do poliverso?

















Separada união

É mais conveniente admitirmos pacífica e passivamente a separação de entes queridos. A luta pela união é desgastante, repulsiva e ás vezes, até infrutífera.






























Amor visual...

Aqui estou eu!
Sentado desconfortavelmente diante da televisão ligada.

Aí está você!
Sua expressão talentosa é tão repleta de talento. Você, naturalmente, é a expressão. As palavras saem de sua boca mostrando exatamente o que quer dizer. Seus olhos claros brilham quando transmitem as suas sensações. É um poder sem limites. Uma brasa eternamente acesa, que aquece e impulsiona as suas realizações.

Aí está você!
Mostrando a todos, mesmo com a sua voz modesta pronunciando modestamente o significado do sucesso. Seu jeito meigo e doce de colocar as suas opiniões, e embora afirme que tenha uma personalidade impositora, a coloca no mundo encantado das deusas.

Aqui estou eu!
Sem expressão alguma e tão longe do calor de seu corpo. Sinto que me é impossível chegar próximo a você. Existe uma distância muito grande entre os meus desejos ardorosos e àquela a quem este amante tão devoto confere todos os seus dias.

Aqui estou eu!
Busco rabiscar uns versos sobre esta minha devoção. Um poeta se arriscaria a tal poesia, pois a musa está logo ali, e, estes incansáveis redatores dos sentimentos humanos sempre estão dispostos a sofrerem com cada letra colocada nos papéis em branco.

Aqui estou eu!
Não sei se seria capaz de sofrer por tais versos. Não sei se seria capaz de sofrer por tamanha devoção. Não sei se seria capaz de rabiscar estes versos, embora confesse que durante anos tentei fazê-los e não consegui, sobretudo por não possuir talento algum.

Aí está você!
Pronunciando os seus projetos e as suas idéias a respeito de seu próximo filme. É tão simples a sua explanação.

Aqui estou eu!
Prisioneiro e fiel a este amor. Minha postura diante de sua imagem é o retrato fiel da minha submissão. Não escondo dos objetos da minha morada o calor que se passa quando assisto às suas entrevistas.

Oh! Minha querida e estimada xícara
Penso que a sua compreensão deste assunto é de suma importância para este amante solitário. Não me importo com os acontecimentos do mundo lá fora. É tão banal e sem sentido a vida dos humanos, que os desprezo. Os seus ouvidos, minha doce e atenciosa amiga, são para mim o mais confortante dos confessionários. Posso transmitir-lhe todos os meus mais íntimos desejos e sei que não me reprovaria de maneira alguma. É tolice imaginar que mais alguém poderia me ouvir com tanta atenção e discrição. Jamais um ser, supostamente vivo, me entenderia como você me entende.







Oh! Minha querida e estimada xícara
Sinto-me confortavelmente tranqüilo diante de você. O meu amor por esta imagem é bem maior que qualquer amor carnal. Não quero parecer um louco nesta história, embora as evidências sinalizem para este estado de saúde. Mas garanto-lhe, minha doce e atenciosa amiga, não acredite na aparência do meu ser. É fundamentada no sentimento maior, que envolve os seres humanos deste planeta.

Oh! Minha querida e estimada xícara
Deixe-me colocar este líquido tão saboroso que acabo de fazer. É melhor que eu tome um gole deste café, e então, reinicie os meus contatos com a minha amante através desta entrevista.

Aí está você!
Toda a platéia e os telespectadores prestam muita atenção às suas respostas. As pessoas ficam atentas, pois sabem do valor de cada palavra emitida. Seu entrevistador, um gordo prepotente e engraçadinho começa pelas perguntas previamente relacionadas, mas durante a entrevista as suas respostas tomam o espaço e o assunto transcorre sem necessidade de ensaio, ou mesmo de qualquer seqüência. Você encontra sempre o melhor caminho para relatar os seus projetos.

Aí está você, e aqui estou eu!
Camaleão camuflado de ser humano
Inocente testemunha das mazelas deste planeta…

Conforto o meu ser nesta obsessão
Mais fácil seria sair e procurá-la
Mas não, não há distância
Apenas corpos que não ocupam o mesmo espaço
Deste espaço limitado
Estamos distantes por opção…
Aí está você, e aqui estou eu!
Rodeado por fotos e cartazes
Amarelados pelo tempo
Que não tem piedade de tomar certas decisões…

Aqui estou eu!
Qual seria a sua reação se eu lhe enviasse uma carta? Não sei. Talvez, preocupada com os seus afazeres atuais, e por não conhecer o emitente, buscaria o lixo mais próximo e atiraria a missiva dentro deste asqueroso, porém utilíssimo objeto.
Não. Creio que não seria uma boa idéia lhe enviar uma carta. Creio que os meus olhos não estão preparados para esta confissão.
Ninguém mais pode saber deste amor. Nem os anjos celestes e nem os demônios infernais. Não. Nenhum deles me entenderia. Possivelmente, me aconselhariam a tomar certas atitudes sem nexo. Não. Os anjos celestes e os demônios infernais são específicos para outros casos.

Aí está você!
Seus cabelos loiros e lisos se comportam tão mansamente. Diferente daqueles cabelos elétricos e raivosos das mulheres contemporâneas. Eles me parecem tão calmos, embora dinâmicos. Transmitem paz, e mais, transmitem amor.

Aqui estou eu!
Interrompo, extremamente contrariado e molhado pelo café derramado, esta contemplação. Pois neste maldito momento, movidos por uma lei maldita, cortaram a sublime energia elétrica de casa.
As velas trouxeram outras imagens. Não eram as suas.





A imperfeição

Quando Deus resolveu criar o homem, provavelmente utilizando algum processo genético de clonagem, deixou claro que seria apenas um ser semelhante a ele.
A necessidade de companhia; a falta de planejamento; o cronograma antecipado. Estes, e mais alguns fatores trouxeram ao mundo, Adão. Um ser tão imperfeito como era o seu criador.
A solidão exercida pela monotonia do paraíso gerou o primeiro estado crítico de sofrimento. O criador, feliz pelos resultados das experiências entre os animais irracionais trouxe ao mundo, Eva. Assim, interrompeu o seu projeto inicial de produção em série.























Olhares não meus...

Vista por olhos que não os meus, a minha vida é esta comédia sem graça e sem enredo. Quando focalizo meus olhos nesta comédia, nem mesmo as lágrimas contidas conseguem escapar.
Sou a luta entre o desprezo e a melancolia. Um ser vivo já morto, que teima em respirar o ar moribundo, pois não acredita que esteja vivo, apenas vaga demente como todo ser invisível.
Ignoro qualquer elogio endereçado a mim, sobretudo daqueles que servem para elevar o espírito eternamente caído e sem forças para levantar.
O amigo, este gladiador da desventura humana, tem na sua índole como um verdadeiro código de honra, resgatar os parceiros que se encontram quase afogados no fundo de algum poço. Os conselhos de resgate destes honrosos companheiros são sempre suspeitos, e embora pareçam dignos e sinceros, carregam consigo a mais fantasiosa das mentiras. Seus deslizes são sombras da sua amizade. Trazem consigo a idéia fixa de me iluminar, porém a minha escuridão jamais abrigará a luz.
Não existe qualquer possibilidade da minha fé remover montanhas, talvez até porque as montanhas são irremovíveis. Não consigo acreditar na fé. Seria mais fácil enganá-la, e dizer-se crente, mas não minto para estes fenômenos sobrenaturais, e mais, sofro por não crer. Não creio nem mesmo nos meus olhos, pois sei que eles não estão preparados para ver. A realidade também é invisível.
Esta vida que há em mim, que se diz viva, e que sinto morta, não existe para ninguém. O que penso, não penso. O que sinto, não sinto. O que vejo, não vejo.
Seria trágico se estas mãos possuíssem as características mais banais, que normalmente caracterizam os seres humanos banais. Colocaria um ponto final nesta comédia.
Vista por olhares que não os meus, e também vista pelos meus, a minha vida é esta bosta que demonstra ser, e é.





As lágrimas

As lágrimas, estas delatoras molhadas, escorrem torrencialmente pela minha face, e nem ao certo sabem o motivo desta enxurrada. Molham o corpo e lastimam as lágrimas da alma, que nunca chora.
Meu choro é seco e insensível. Choro por não chorar. Misturo o pranto com a maionese que não comerei. Sou o luto de mim mesmo. O fantasma de mim mesmo. Aliás, não sou.



























Relógios...

Adianto os ponteiros do relógio de pulso, que não tem ponteiros, e não o coloco no pulso por ser alérgico a pulseiras metálicas. É mais simples olhar “as horas” no relógio digital. Não precisa conhecer aritmética.
Não sou alérgico à pulseira de couro, todavia, não possuo recursos financeiros para comprá-la. Nos camelôs encontramos imitações de pulseira de couro, e bem mais barata, porém também sou alérgico a estas falsificações baratas.
Adianto os números do relógio digital, pois não me sinto partícipe deste tempo, que me aborrece, e que por sua vez, também me despreza.
























O poeta dos sonhos e o poeta morto

O poeta dos sonhos sonhou com o poeta morto, que no sonho vivia e declamava poesias líricas e vivas.
O poeta morto, que no sonho vivia e declamava poesias líricas e vivas, convidou o poeta dos sonhos a declamar alguma poesia morta.
O poeta dos sonhos, que no sonho existia, chorou ao ouvir o segundo verso da terceira estrofe da sua poesia sobre os poetas mortos.
O poeta morto, que no sonho vivia, levantou-se da cadeira e abraçou o poeta dos sonhos, que no sonho vivia e que acabara de declamar a poesia dos poetas mortos.
O poeta dos sonhos despertou do sono, enxugou as lágrimas da poesia morta e apagou o sonho.





















Peça teatral

As asas coloridas da borboleta em vôo roubaram a cena quatro do terceiro ato da “Primavera”.
Primavera que o inverno trouxe. Primavera que o verão levará.
Borboleta que quando lagarta destruiu as folhas, e agora, retira das flores o néctar da vida.
As asas coloridas das borboletas noturnas roubaram a cena cinco do quarto ato das “Avenidas”.
Avenidas trafegadas nas manhãs por veículos responsáveis.
À noite trafegam pelas avenidas veículos loucos por prazer.
Borboletas noturnas, que quando lagartas destruíam os corações menos preparados, e agora, retiram o soldo do bolso destes corações famintos por sexo.





















Chuva molhada

Uma chuva “fina”, como o cabelo fino da ninfeta na “Avenida Nova”.
Uma chuva “perpendicular”, como os pensamentos mais terríveis.
Uma chuva ”compassada”, como a melodia de uma nota só.
Uma chuva “generosa”, como os furacões caribenhos.
Uma chuva “silenciosa”, como os gritos de alerta.
Uma chuva “cautelosa”, como os demônios do apocalipse.
Uma chuva “fria”, como a vida dos mendigos.
Paciente, como os deuses do juízo final. Com fome, como os negros da Etiópia. Estou sem perspectivas razoáveis para continuar andando sob esta chuva. Paro, pois estou decidido a parar. Protejo-me destes pingos intermináveis, instalando-me sob uma marquise de um edifício velho, desabitado e preste a ruir.
Não me preocupo se é dia, noite, ou se o planeta terra hospeda outros hóspedes além dos conhecidos terráqueos.
Não iludo a minha camiseta vermelha sem estampa, nem a minha calça jeans desbotadíssima e surrada. Também não iludo o meu tênis preto sem cadarço, nem os meus cabelos grisalhos, que esta chuva é passageira.
O vento cansado de correr pelo mundo estacionou nesta parada e se esqueceu de levar a chuva para outros redutos menos favorecidos.
Apóio o meu pé direito na soleira da porta, ou seja, no lugar onde existia uma porta, com a finalidade única de descansá-lo. Às vezes, esta parte do meu membro inferior se cansa de tanto andar. Talvez, por meu tênis preto sem cadarço estar encharcado d’água, ele tenha se cansado ainda mais. O seu repouso parece-me deveras merecido. O meu pé esquerdo é mais resistente, talvez por se adaptar melhor às condições adversas. Revezo os pés na soleira da porta, e sabedor que sou das suas condições físicas momentâneas, estipulo um intervalo maior para o pé direito.
Aproveito que a chuva continua fria e sem “hora” para parar, e desenterro da minha bolsa um exemplar barato de “Hamlet”. A página marcada representa outra chuva perpendicular. A melancolia da chuva se compõe à minha melancolia e inunda “Elsinorg” de melancolia.
Não me atrevo a dramatizar a vida mais do que dramatizou Shakespeare. As suas tragédias são sensatas e fundamentadas, contrapondo-se à minha insensata tragédia sem fundamentos.
A chuva continua compassada, porém a sua intensidade é maior do que suportam os bueiros. E observo atentamente, embora não dê a mínima atenção, alguns pontos de enchente.
O drama chega ao fim e confundo as enchentes deste mundo venenoso, com a enchente de veneno no “Reino da Dinamarca”.
Uma chuva fina... e não tão generosa...
Paciente, todavia já sem paciência, e ainda com mais fome, ando decidido a andar e desprotejo-me destes pingos intermináveis, desinstalando-me desta hospitaleira marquise.
Não me preocupo se é dia...
Enterro o exemplar de “Hamlet” na minha bolsa e vou novamente me molhar...























Últimos segundos...

Abuso dos meus últimos segundos, sobretudo daqueles que são decisivos para os meus últimos fins.
A vida recorre a recursos normais, e, eu não compartilho com estas atitudes mesquinhas, desprovidas e despropositais deste universo coletivo, pois não acredito neste desarranjo da humanidade.
É ingenuidade e inocência se pensar em atitudes cordiais e espontâneas, mesmo se estas vierem de pessoas íntimas ao meio, onde a sua natureza é natural. Nem o balcão de um bar é independente, pois espera por pedidos.
Abuso dos meus últimos segundos e estou ciente que não me faltarão novas oportunidades para experimentar derradeiros momentos, e mais, gosto deste ciclo comprometedor.
Abuso dos meus últimos segundos...




















Para alguém ou para todos...

Não suporto mais a idéia de conversar comigo. As dúvidas e as “não explicações” são sempre as mesmas. O sorriso é acompanhado de uma nuvem que embaraça os meus pontos de vista e a minha suposta felicidade.
Os dias passam sem que eu perceba o óbvio, e estes mesmos dias se repetem ao chegarem novos dias. Não há sofrimento físico ou psíquico, apenas dias a mais ou a menos.
Não instituo referências para me certificar da minha existência.
A minha presença não se faz necessária em todos os meus momentos, pois ela é obscura e sem sentido.
As letras, estas inseparáveis parceiras dos meus dias de frio e também nos dia de calor, quase não mais me acompanham, talvez por se cansarem deste ser inexpressivo.
O retrato da minha insensatez é coberto por um manto umedecido de lágrimas. Não as minhas que se encontram estancadas num reservatório sem ladrão, mas daqueles que um dia me acompanharam.
Sei que existem olhos que me olham com carinho, porém não há o que fazer por estes olhos, embora eu os guarde com ternura, não estou pronto para atendê-los. E mais, é necessário o afastamento parcial ou total, pois aos poucos estou lhes ferindo, sem que se apercebam deste fato. Pode ser impressão, mas não é.
Atendo o meu instinto impulsivo e desumano, e o resultado, saberei ao abrir os olhos.












Árvore temporária

Sou um poeta ignorante que ignora os obstáculos da vida, mas os respeita. A realidade existe apenas na minha imaginação. Os fatos reais estão aquém do meu domínio e até da minha percepção.
A vida real – assim chamada pelos meus semelhantes, que em nada são iguais a mim – não respeita as decisões individuais, pois o indivíduo nada mais é do que um mero coadjuvante, onde não há protagonista, nem tampouco diretor. O tema é o indivíduo coletivizado, porém, não existe sincronismo entre o indivíduo e o coletivo.
As letras ignoram o sistema estabelecido e também, não respeitam o mais próximo dos humanos. Vagueiam pelos papéis em branco sem a mínima censura. São companheiras fiéis da minha imaginação. Nada pedem para se reproduzir e, embora às vezes não sejam compreendidas por fazerem parte de um rabisco, mostram a vida como a vida é, ou seja, apenas imaginação.
Sou grato àqueles que me nutriram, porém, devo a vida àqueles que me ajudaram a vomitar.
As palavras escritas são amargas e dolorosas, porém são verdadeiras, como verdadeiros são os pensamentos e não as ações. Agir é a maneira que encontramos de trair os nossos pensamentos e as nossas imaginações.
Os nossos cinco sentidos são opcionais e os utilizamos sem qualquer critério pessoal, talvez por sermos escravos desta pseudoliberdade condicional. Somos o fruto de uma árvore também temporária e o esterco para nutrir outras árvores da mesma ou de outras espécies.










Sem regras

A regra geral é não cumprir regras, então, para que tais regras?































Cicatrizes...

É mais conveniente e mais cômodo aceitar o inexplicável. Um imenso vazio está presente entre o meu labirinto e a normalidade dos normais.
A ferida não se cicatriza, e mais, expande-se até os confins da incerteza e da total insegurança.
Os braços que poderiam abraçar estes braços carentes de abraços se apresentam a estes braços desprotegidos como braços invisíveis e inquisidores.
Talvez, sofro por querer sofrer...

























Mar verde

A sensação de estar perdido no meio de um canavial é a mesma que quando estamos para decidir o rumo de nossas vidas.
Embora diferentes em muitos aspectos, as ruelas se assemelham, e confundem a nossa decisão.
Ao se chegar no cruzamento, imagina-se que aquele caminho nos conduzirá à estrada principal, mas não...
E assim se dá, cruzamento após cruzamento.

























Invasão dos bichos

Sinto que uma invasão de bichos desconhecidos e vingativos esteja próxima de acontecer. Destruí as suas fontes de alimentação, e agora, o que comerão? Talvez as minhas roupas ou então os meus suprimentos alimentares. Alguns se contentarão com restos de comida, enquanto outros...




























Fogueira morta
A fogueira que não traz calor, tampouco frio. Sua chama não inspira confiança e apenas queima os gravetos e as toras que não pediram para serem queimadas.
Mesmo com os poucos pingos d’água de uma garoa inexpressiva, seus gemidos não são escutados.
Ninguém canta em sua volta, pois o desencanto e até mesmo o nada é o que você oferece aos participantes da festa.
Olho para todos e observo que ninguém se interessa por sua vida finita, que percebo estar no final. Mais alguns minutos e lá estará você, apagada e com as cinzas espalhadas por um espaço, que mesmo desprezado, fora seu.
Sinto que esta mesma chama ocupa este meu ser sem brilho. Os louvores saem das almas apenas por um instante, e se dissipam, morrem com o primeiro vento, vindo de não sei onde.
Não há mais galhos secos e as cinzas jogadas no rio percorrerão por toda a sua extensão, morrendo como tantas outras na imensidão do oceano.
Morte à fogueira e a mim...
















Fim de um ciclo

Chega ao fim um ciclo e com ele a saudade de deixá-lo. Isolamento e companheirismo. Chega ao fim um ciclo.































Mentira Proposital?

Este escrito é composto de textos vagos, aleatórios e alienado? Seria a mentira proposital para iludir os leitores mais inocentes?































Texto final

Não afirmo que todas estas linhas façam parte do meu diário, tampouco desminto esta afirmação. Cabe aos leitores analisarem os textos, e, verificar frase a frase, verso a verso, se todas estas palavras são verdadeiras. Presumo que alguém lerá estas linhas, assim sendo, coloco de antemão o julgamento “nas mãos” destes sapientes leitores.
O deprimido consciente é complicado, talvez por questionar as “verdades”. A contracorrente é demasiadamente imperialista e enterram vivos estes verdadeiros ajudantes do universo.
























Credibilidade

Nem sempre o que escrevo é o que penso
Nem sempre o que penso é o que falo
Nem sempre o que falo é o que faço
Nem sempre o que faço é o que escrevo

Será que alguém pode acreditar em mim?



Aaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhh!!!!!!

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